Fotografando a obra de Lina Bo Bardi [Parte 3]

MASP. Image © Hans Gunter Flieg                                                    MASP. Image © Hans Gunter Flieg

Na terceira e última parte do artigo especial para o Dia da Fotografia, Fotógrafos perpetuando visões da arquitetura, aprofundaremos sobre as diferentes miradas às principais obras de Lina Bo Bardi, desde sua Casa de Vidro, passando pela Casa Valéria Cirell, ao MASP, e chegando finalmente ao SESC Pompéia.
Por Andrey Rosenthal, Ana Cláudia Breier e Maíra Teixeira
Focando a primeira obra
A casa no Morumbi, construída para o casal Bardi entre 1949-51, foi a primeira obra deLina Bo Bardi a ser amplamente divulgada pelas revistas especializadas, principalmente pela Habitat, fundada pela arquiteta e seu marido em 1951. A revista de número 10 (1953) publicou na sua capa imagens da casa já construída e habitada pelos Bardi, e também um texto escrito pela arquiteta, que fala sobre a concepção da edificação e da sua relação com a natureza. As fotografias que ilustram a edição são do fotógrafo Francisco Albuquerque e foram às primeiras imagens oficias da casa a serem publicadas, sendo depois reutilizadas em diversos artigos e livros para ilustrar textos referentes a essa construção, tornando-se as fotografias mais conhecidas e publicadas da casa de Lina.

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Casa de Vidro. Image © Chico Albuquerque                                                            Casa de Vidro. Image © Chico Albuquerque

O texto de dez páginas, intitulado Residência no Morumbi, traz vinte e três imagens da casa, que mostram o grande salão repleto de obras de arte de diferentes períodos; a cozinha com seus eletrodomésticos; os dois pátios internos, um circundando uma árvore já existente no lote e o outro destinado ao cultivo de rosas; os fornos construídos do lado de fora, por caboclos; e o grande prisma de vidro, um objeto geométrico racional, que pousa sobre finos pilotis de aço. A casa foi fotografada em diferentes ângulos, mas todos evidenciando o contraste entre o moderno e o tradicional, o industrial e o artesanal e o artificial e o natural. Mesmo as imagens do interior da casa destacam essa relação de contraste entre ambiente construído e ambiente natural, mas também revelam uma outra, a de proximidade entre o espaço de morar e a natureza, possibilitada pelos grandes panos de vidro que permitem que a casa avance além dos seus limites reais. Sobre essa relação, Lina diz o seguinte: “Esta residência representa uma tentativa de comunhão entre a natureza e a ordem natural das coisas, opondo aos elementos naturais o menor número de meios de defesa”.
Francisco Albuquerque, o autor das imagens, foi um pioneiro na fotografia comercial, responsável pela primeira campanha publicitária fotografada no Brasil. Iniciou sua carreira em Fortaleza, sua cidade natal, em um estúdio montado por seu pai que também era fotografo. Profissionalizou-se como retratista em 1936 e, em 1942, acompanhou Orson Welles, realizando a fotografia do filme inacabado It’s All True. Em 1945 mudou-se para São Paulo onde montou estúdio e viveu até 1975, quando então retornou para Fortaleza e passou a dirigir o laboratório ABAFILM. Foi autor de diversas campanhas publicitárias e fotografou personalidades como Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, Aldemir Martins, Mário Cravo e Victor Brecheret, entre outros.
Seu trabalho, no entanto, não se limitou à publicidade e ao retrato, ele captou também as belas paisagens da sua terra natal, muitas delas presentes no seu livro Mucuripe lançado em 1989. Quando ainda estava em São Paulo realizou diversas fotografias da cidade, dos seus prédios e da vida em um grande centro urbano. Foi com esse olhar treinado, experiente e sensível que Francisco Albuquerque focou a casa, recém-construída, dos Bardi e produziu as imagens mais conhecidas dessa residência, imagens clássicas como, por exemplo, a que traz a arquiteta olhando através dos grandes panos de vidro a paisagem do exterior, e outra que mostra a casa no alto, sob os seus finos pilotis, se destacando em relação a paisagem do entorno. O fotografo conseguiu, com sua sensibilidade, explorar muito bem a relação arquitetura e natureza, temática trabalhada não só no artigo de Lina para Revista Habitat, mas também por ela e pelo seu marido na concepção da casa.
“Nossa residência no Jardim Morumbi está sendo focalizada pelas maiores publicações em arte e arquitetura do mundo. Também tenho recebido, constantemente, solicitações de fotos, detalhes arquiteturais e permissão para visitas. O principal motivo desse interesse está em termos adotados como base do projeto o binômio ‘Arquitetura – Natureza’ e na escolha que fizemos do local para sua construção: O jardim Morumbi, de fato, não foi por acaso que elegemos o Jardim Morumbi! É que esse é o único local, em São Paulo, onde a natureza foi preservada e está plena de encantos. A admiração despertada por nossa casa é mais uma vitória da arquitetura brasileira e também da beleza e do panorama do jardim Morumbi”.

O olhar estrangeiro
A parceria entre Lina e os “seus” fotógrafos consolidou-se com Peter Scheier, com quem ela conviveu diretamente no MASP e na Habitat. Scheier era alemão de origem judia, e veio para o Brasil em 1937, na condição de refugiado do nazismo. Em São Paulo, trabalhou como auxiliar de frigorífico, vendedor de abajures, tipógrafo do O Estado de São Paulo e, posteriormente, como repórter fotográfico da revista O Cruzeiro (do grupo Diário Associados que tinha como diretor o jornalista Assis Chateaubriand).
O trabalho no O Cruzeiro não só o permitiu desenvolver mais a suas habilidades na área da fotografia, mas lhe impulsionou para sua próxima experiência profissional a de fotógrafo oficial do MASP, onde passou a conviver diretamente com os Bardi, essa experiência foi riquíssima para Scheier, que pode refinar o seu olhar sobre arte:
“Se a prática na revista “O Cruzeiro” permitiu o desenvolvimento do olhar do repórter, aquele que “conta a história”, foi o trabalho junto a Bardi e Lina Bo que refinou a perspectiva cultural do fotógrafo sobre a arte e a arquitetura. Scheier não somente registrou as atividades do museu e a constituição de sua coleção, mas ainda realizou alguns trabalhos para a revista de arte e arquitetura “Habitat”, editada pelos Bardi em São Paulo, além de documentar a produção do Studio de Arte Palma e da Fábrica de Móveis Pau Brasil Ltda”.
Scheier registrou a obra de diversos arquitetos, entre os quais Warchavchik, Rino Levi, Lucjan Korngold e Oscar Niemeyer. A parceria com Lina, no entanto, não se limitou às fotografias dos edifícios, estendendo-se para os móveis, maquetes e exposições montadas no MASP.
Henrique Mindlin foi um dos primeiros a publicar obras de Lina Bo Bardi. Em seu livro Arquitetura moderna no Brasil dedicou dois momentos para a arquiteta. No capítulo Casas, Edifícios Residenciais, Hotéis e Conjuntos Habitacionais, apresenta um conjunto de imagens da casa de Lina Bo e Pietro M. Bardi, todas do fotógrafo Francisco Albuquerque (e publicadas originalmente na revista Habitat n. 10 em 1953). O outro momento é quando o autor mostra o interior do antigo MASP, fotografado por Scheier (focando principalmente o mobiliário desenhado por Lina).
Scheier também fotografou a casa dos Bardi, mas as suas imagens não tiveram a mesma repercussão como as que foram feitas por Francisco Albuquerque. O livro de Olívia de Oliveira, Lina Bo Bardi: sutis substâncias da arquitetura é um dos poucos a trazer essas imagens, que focam o interior da sala tendo ao fundo a vista da cidade. Um outro projeto da arquiteta fotografado por Scheier foi o da casa Valéria Cirell, essas imagens obtiveram mais repercussão do que as anteriores, talvez por se tratar das únicas feitas da residência logo após a sua construção (1958). Essas fotografias ilustram o livro organizado por Marcelo Ferraz, Lina Bo Bardi, e também Lina Bo Bardi: obra construída e Lina Bo Bardi: sutis substâncias da arquitetura, ambos da arquiteta Olívia de Oliveira.
Nas suas fotografias, em especial da casa Valéria Cirell, Scheier não permitiu que só a residência aparecesse, ele buscou ampliar o seu olhar além do objeto a ser fotografado, para que o entorno fizesse parte da imagem, possibilitando a visão do objeto arquitetônico dentro do seu contexto, talvez por entender, assim como Lina, que a arquitetura deve ser encarada como parte do lugar em que foi inserida:

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Casa Valeria Cirell. Image © Peter Sheier                                                              Casa Valeria Cirell. Image © Peter Sheier

“O arquiteto deverá ser também e, sobretudo, o projetista da casa do homem, e até mesmo o mentor que, em certo momento, poderia se tornar um autor da rebeldia contra a ‘prisão’, e perceber que muitíssimos de seus colegas, talvez inconscientemente, vão reduzindo a vida humana a uma aventura sem fantasia, alheia à natureza, num divórcio que não pode ser normal, que contradiz as necessidades orgânicas, tendendo para uma arrogância suspeita, como que num desafio às origens das quais não podemos nos esquecer”.
Scheier também trabalhou em um estúdio fotográfico próprio, Foto Studio Peter Scheier, montado na da década de 1940, onde realizou diferentes trabalhos inclusive para a rede de TV Record, da qual se tornou fotógrafo oficial do período de 1958 a 1962. O estúdio funcionou até 1975 quando Scheier voltou para Alemanha, mas durante um determinado período do seu funcionamento ele contou com a colaboração de um jovem assistente, o fotógrafo, também alemão, Hans Günter Flieg, que mais tarde se tornaria mais um dos parceiros de Lina no registro de imagens da sua obra.
Flieg veio para o Brasil também na condição de refugiado do regime nazista, de família judia, aqui chegou em 1939, no mesmo ano que concluiu seu curso de fotografia no museu Grete Karplus em Berlim, aos 16 anos de idade. Depois de sua experiência com Scheier, realizou alguns trabalhos com publicidade até montar o seu próprio estúdio, onde passou a documentar o desenvolvimento industrial e o crescimento urbano da cidade São Paulo. Acabou produzindo, durante as décadas de 1950 e 1960, muitas imagens de indústrias, máquinas, operários, construções, etc. Este trabalho inevitavelmente o conduziu para o registro de arquitetura, particularmente a de Oscar Niemeyer, Ícaro de Castro Mello, Zanine Caldas, Lucio Costa e Lina Bo Bardi.
Com Lina, em especial, ele teve uma relação bem direta, realizando diversos trabalhos, muitos dos quais publicados na Habitat. Foi Flieg quem fotografou a maquete do Museu em São Vicente que, segundo ele “felizmente nunca saiu da prancheta porque eu sei o que teria acontecido com os quadros no caso de falha no ar-condicionado”. Após a construção do MASP Lina o convidou para registrar o auditório do museu o que gerou uma das fotografias mais conhecidas desse espaço, a qual traz o auditório todo vazio, apenas com uma pessoa em cena.
As fotos da construção do MASP produzidas por Flieg focaram os materiais utilizados na obra, evidenciando toda sua brutalidade e pureza; bem como o processo de execução do edifício, com muitas máquinas e operários. O MASP captado pelas lentes desse fotógrafo se revela grandioso, “monumental” e arrojado, a verdadeira expressão de uma cidade que estava em pleno desenvolvimento industrial e econômico. Nessas imagens Flieg deixou impresso um pouco da sua personalidade, ao realçar os aspectos industriais presentes na obra, mas também revelou as intenções de simplicidade e de impacto almejados pela arquiteta, que tinha como premissa desenvolver:
“Uma arquitetura simples, uma arquitetura que pudesse comunicar de imediato aquilo que no passado, se chamou de “monumental”, isto é, o sentido de “coletivo”, da “Dignidade Cívica” [...]. Acho que no Museu de Arte de São Paulo eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e os arquitetos de hoje), optando pelas soluções diretas, despidas. O concreto como sai das formas, o não acabamento, podem chocar toda uma categoria de pessoas”.
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MASP. Image © Hans Gunter Flieg                                                        MASP. Image © Hans Gunter Flieg

As fotografias fruto da parceria, entre Lina, Francisco Albuquerque, Peter Scheier e Hans Günter Flieg são imagens belíssimas e estão hoje espalhadas pelo mundo em livros e revistas especializadas, divulgando a obra da arquiteta. Esses fotógrafos conseguiram captar a essência das obras, por sensibilidade ou mesmo por orientação da própria arquiteta, que costumava dirigir as sessões de fotografia.

O olhar interno
A produção de Lina, no entanto, não foi registrada apenas pelos profissionais com os quais ela estabeleceu parcerias. No final da segunda metade do século XX alguns arquitetos brasileiros começaram a realizar fotografias no intuito de construir uma base documental da produção existente, alguns desses, como Hugo Segawa e, posteriormente, Nelson Kon, acabaram produzindo imagens de grande importância.
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MASP. Image © Hugo Segawa                                                           MASP. Image © Hugo Segawa

Hugo Segawa, arquiteto e professor da FAU USP, autor de vários livros e antigo colaborador da revista Projeto, fotografou a obra de diversos arquitetos brasileiros, inclusive a de Lina Bo Bardi. Algumas dessas imagens encontram-se no livro Arquitetura moderna brasileira de Sylvia Ficher e Marlene Acayaba (1982). O registro feito por Segawa mostra o MASP em dois ângulos diferentes, um onde ele aparece voltado para Avenida Paulista – foto tradicional – e o outro, voltado para Avenida 9 de Julho – revelando uma “fachada” pouco explorada pelos fotógrafos, onde se vê o grande prisma, mas não o grande vão livre, que desaparece pela presença dos terraços escalonados de onde brotam uma densa vegetação. A imagem do MASP com uma caixa de vidro, que flutua leve pela Paulista desaparece e fica a imagem de um prisma sobre uma vegetação bem heterogênea. De um lado o fotógrafo evidencia a síntese da forma arquitetônica e do outro a complexidade expressa na presença dos terraços e da vegetação.
Outro registro importante feito por Segawa foi o da casa do Chame-Chame em Salvador. Até então só eram conhecidas as poucas fotografias realizadas pelo proprietário da obra, o senhor Rubem Nogueira Filho. Segawa utilizou tais imagens em seu livro Arquiteturas no Brasil 1900-1990 (1999), especificamente ilustrando o tópico Em Busca da América: Estrangeiros no Brasil.
Nelson Kon, arquiteto formado pela FAU USP em 1983, trabalha como fotógrafo profissional desde 1985, quando se especializou no registro da arquitetura. Kon já fotografou a obra de diversos artistas como, Rino Levi, Vilanova Artigas, Oswaldo Bratke e Oscar Niemeyer, entre muitos outros. Atualmente trabalha contribuindo com editoras brasileiras e estrangeiras (como Phaidon, Prestel, Rizzoli, Gustavo Gili e Taschen). Em 2002, Kon desenvolveu, juntamente com a pesquisadora Olívia de Oliveira, um importante inventário fotográfico da obra de Lina Bo Bardi. Material publicado pela revista internacional 2G. O número biográfico, intitulado Lina Bo Bardi: obra construída traz imagens de todos os projetos edificados da arquiteta. Com isso Kon “atualizou” as imagens da obra de Lina, principalmente da casa no Morumbi e do MASP, que ainda eram apresentados, respectivamente, pelas fotos de Francisco Albuquerque e de Hans Günter Flieg. As fotos produzidas por Kon passaram a ilustrar diversos outros livros, entre eles o de Andreoli e Forty, Arquitetura Moderna Brasileira, publicado em 2004. No livro, os autores mostram três projetos da arquiteta: o MASP, o SESC Pompéia e a casa da arquiteta no Morumbi. Para ilustrar o texto utilizaram também fotografias realizadas por Francisco Albuquerque (as mesmas apresentadas na revista Habitat n. 10 em 1953). No caso da residência Bardi, tanto as imagens de Kon como as de Albuquerque focam o objeto arquitetônico em relação à natureza. No entanto, pode-se observar que, enquanto, Albuquerque explora o isolamento da construção, Kon mostra a edificação em meio a uma densa vegetação.

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SESC Pompéia. Image © Nelson Kon                                                            SESC Pompéia. Image © Nelson Kon

Referências Marcelo Ferraz (org), Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, São Paulo, 1993.
Olivia de Oliveira, Lina Bo Bardi: obra construída, Gustavo Gili, Barcelona, 2002.
Olivia de Oliveira, Lina Bo Bardi: Sutis substâncias da arquitetura. Romano Guerra, Gustavo Gili, São Paulo, Barcelona, 2006.

Andrey Rosenthal Schlee é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal de Pelotas (1987), mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1994) e Doutor de Universidade de São Paulo (1999), professor da Universidade de Brasília. Ana Cláudia Böer Breier é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Santa Maria (2002), mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005) e Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (2013). Atualmente, é professora no Instituto Federal Farroupilha - Campus Santa Rosa. Maíra Teixeira Pereira é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Viçosa (2001), mestre pela Universidade Federal de Viçosa (2003) e Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (2014). Atualmente é professor efetiva da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Fonte: Maíra Teixeira Pereira. "Fotografando a obra de Lina Bo Bardi [Parte 3]" 21 Ago 2015. ArchDaily Brasil. Acessado 22 Ago 2015. http://www.archdaily.com.br/br/772263/fotografando-a-obra-de-lina-bo-bardi-parte-3

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