Habitação de interesse social em áreas nobres de SP: conflitos, desafios e impasses.

Conjunto Habitacional do Jardim Edite, na Avenida Berrini, área nobre de SP.

Conjunto Habitacional do Jardim Edite, na Avenida Berrini, área nobre de SP.     Créditos: Nelson Kon

Aprovado em 2014, o Plano Diretor de São Paulo já vem dando seus primeiros avanços em direção a uma reforma urbana da capital paulista. A expansão das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que ganharam aumento de 8% em todo o município, principalmente dentro do Centro Expandido, faz parte da evolução que São Paulo tem vivenciado atualmente. De acordo com o novo Plano, progressista e comprometido em democratizar o acesso à cidade, a tendência é a de que o núcleo da capital receba cada vez mais zonas de interesse social dentro dos próximos anos.

Se por um lado a inserção de habitação social nas áreas mais bem consolidadas é vista como uma iniciativa que promete atenuar a expressiva segregação territorial tradicionalmente existente na capital, por outro, incita conflitos que problematizam este processo de maior redemocratização da cidade defendida pelo novo Plano Diretor. 

A Folha de S. Paulo do último domingo, 2 de agosto de 2015, por exemplo, levantou uma problemática valiosa de reflexão quanto à implantação de conjuntos habitacionais em bairros nobres de São Paulo. Citando o caso do empreendimento do Jardim Edite, situado na Avenida Luís Carlos Berrini, importante eixo empresarial da cidade, a Folha mostrou que, apesar do privilégio em morar numa área bem localizada, os moradores desse conjunto habitacional precisam se deslocar até a favela de Paraisópolis, a cerca de 4,5 quilômetros de lá, para fazer compras.

Segundo os entrevistados, os serviços da região do Itaim Bibi e do Brooklin, onde se localiza a Avenida Berrini, não atendem ao poder aquisitivo dos moradores do conjunto habitacional do Jardim Edite. Um dos residentes, em depoimento à Folha, alegou que há supermercados locais que chegam a cobrar até R$ 1,50 pelo tomate, valor que não pode arcar já que vive apenas com um salário-mínimo de aposentadoria.
Hotel Cambridge, no Centro de São Paulo: habitação de interesse social com ressalvas.
Hotel Cambridge, no Centro de São Paulo: habitação de interesse social com ressalvas.
Já no Centro de São Paulo, antigos impasses ainda interferem no processo de produção de habitação social. Sinônimo de luxo e glamour nos anos 1950, o extinto Hotel Cambridge, próximo ao Vale do Anhangabaú, funcionou ao longo da última década como casa noturna para festas “descoladas”, mas por causa de dívidas acumuladas foi desapropriado pela prefeitura, em 2011, pelo valor de R$ 6,5 milhões para convertê-lo em conjunto habitacional.
Designado pelo Plano Diretor de 2014 como ZEIS do tipo 3, o Hotel Cambridge, nesses termos, deveria destinar no mínimo 60% das unidades habitacionais que serão construídas para famílias que contam com até 3 salários-mínimos de renda. A proposta de viabilização de um conjunto habitacional no Hotel Cambridge, apresentada pela Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB-SP) e em vias de aprovação, consistiria no repasse do prédio, via concorrência pública, a uma empresa de construção. Esta, por sua vez, conseguiria entregar 121 apartamentos dos quais apenas 48 seriam repassados à Prefeitura enquanto os outros 73 seriam comercializados pela própria empreiteira no mercado.
No entanto, segundo informações levantadas pela rede ObservaSP, tal proposta contraria os percentuais estipulados para uma ZEIS do tipo 3, que, no caso, deveria ser contemplada, na verdade, com as 73 unidades habitacionais previstas para comercialização via mercado – e, mesmo assim, essa quantidade ainda seria a mínima exigida.
Mesmo tratando-se de uma parceria público-privada, onde ambas as partes deveriam ter ganhos e custos proporcionais, para este caso, no entanto, os ganhos para o “privado” se mostram mais expressivos uma vez que o prédio é de propriedade do Fundo Municipal de Habitação. Em outras palavras, o imóvel seria cedido apenas para a efetuação do retrofit, mas ainda tendo a Prefeitura de São Paulo como detentora e garantidora dos fins sociais da obra. 

Contudo, uma vez que a Prefeitura não dispõe de recursos para viabilizar integralmente o empreendimento, evidencia-se o conflito pelo enquadramento de maior parte do imóvel na lógica de mercado por situar-se em terra bem localizada e, portanto, disputada pelo mercado imobiliário, mesmo sendo oficialmente uma ZEIS.
À esquerda, condomínio de luxo, e à direita, o terreno destinado à habitação popular na Vila Leopoldina: discórdia. Reprodução: Internet.
Na zona oeste de São Paulo, existe outro impasse onde parece imperar a ideia do "ZEIS sim, mas not in my backyard". Há cerca de dois meses, o bairro paulistano da Vila Leopoldina estampou as manchetes de jornais como a Folha de S. Paulo e El País por causa da mobilização das associações de moradores locais contra a implantação de uma ZEIS num terreno baldio de aproximadamente 30 mil metros quadrados na região.
Vizinho a megaempreendimentos imobiliários, cujos apartamentos luxuosos podem custar até R$ 3 milhões, o referido terreno virou motivo de discórdia não apenas pelo temor à “mistura de classes”, conforme argumentos de alguns entrevistados aos jornais mencionados, mas também pelo fato de que sua antiga ocupação era a de uma garagem de ônibus que supostamente contaminava o solo local, impossibilitando-o, atualmente, para fins residenciais.
O caso da Vila Leopoldina é um claro exemplo de disputa entre o mercado imobiliário e o direito à cidade via designação de ZEIS em áreas bem localizadas da capital. Considerada um novo vetor de crescimento imobiliário, a Vila Leopoldina faz parte da lista dos dez distritos paulistanos que no período de uma década (2000 a 2010) passaram de categoria Média para Superior referente ao perfil de distribuição de suas unidades residenciais, segundo dados do livro São Paulo: transformações na ordem urbana, lançado pelo Observatório das Metrópoles no último mês de junho.
Enquanto o terreno ocioso da Vila Leopoldina não tem seu destino definido, os moradores da região sugerem que a área deveria abrigar um parque, uma biblioteca pública, um jardim ou até mesmo um shopping center, já que, para eles, o projeto de habitação popular derivado de uma ZEIS não condiz com o perfil de renda alta do emergente bairro, mesmo que contraditoriamente tenham condenado a utilização do terreno por riscos de contaminação.
Nesse sentido, o cenário de São Paulo joga luz sobre os desafios e impasses do planejamento urbano mais inclusivo e democrático proposto pelo novo Plano Diretor que, certamente, tem similaridades com o panorama de outras grandes cidades do país. O notório avanço do processo de dessegregação territorial em curso parece impactar positivamente o espaço urbano paulistano ao evidenciar e promover conflitos merecedores de reflexão e debates imprescindíveis para a promoção de uma São Paulo mais democrática e acessível.
* por Pedro Paulo Bastos - pesquisador do Observatório das Metrópoles (Rio de Janeiro)



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