A arte de conviver

Intervenções urbanas para requalificar o centro de São Paulo são temporariamente testadas em escala real numa iniciativa inédita que convoca a população a opinar sobre as mudanças esperadas para a cidade

Luisa Cella
Arquitetura e Construção - 11/2014

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Divulgação

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Projetos realizados no Largo do Paissandu e no Largo São Francisco desde o início de outubro de 2014 começam a alterar o uso das duas regiões históricas, há tempos degradadas e tidas como áreas de passagem associadas à violência. Batizadas Centro Aberto, as instalações de caráter efêmero, baseadas na metodologia do escritório dinamarquês Gehl Architects, apresentam novidades como deck, mobiliário urbano, iluminação, sinalização de trânsito, banheiro público, parquinho, bicicletário e atividades culturais.
O estúdio estrangeiro, que prestou consultoria à prefeitura de São Paulo na primeira fase do processo, já testou em escala real intervenções pontuais em metrópoles como Nova York, transformando a habitabilidade da Times Square e da Herald Square. “Esses projetos piloto são, a princípio, temporários – ficarão se as pessoas quiserem. Trata-se de ações no espaço público com mudança mínima e resultado imediato”, revela o arquiteto Gustavo Partezani Rodrigues, diretor de desenvolvimento da São Paulo Urbanismo, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), ambos responsáveis pela iniciativa.
Feito de forma colaborativa, o trabalho não leva uma única assinatura: teve conceito do Gehl Architects, formatação da prefeitura e desenvolvimento a cargo do escritório Metro Arquitetos Associados, chamado para aprimorar os desenhos e acompanhar a obra.
A primeira etapa, lançada pela SMDU em abril de 2013, convocou a sociedade a participar das discussões sobre as interferências no centro. Por meio de encontros e workshops, alguns conduzidos pela equipe do Gehl Architects, a SMDU colheu informações essenciais ao planejamento de modo a traçá-lo de acordo com os desejos comuns de diferentes perfis de usuários. O resultado é uma espécie de respiro, um convite ao encontro, à convivência, ao lazer e à contemplação dessa área que conta a trajetória de São Paulo. “O sistema público, tão burocratizado, pode visualizar o rápido efeito de uma tentativa que está sendo construída e analisada com a população”, revela Rodrigues.
Todos os dias, a ONG Cidade Ativa monitora os dois locais por meio de uma pesquisa com os frequentadores, que servirá de feedback na hora de determinar o que fica. A condução da obra faz valer um precioso conceito apresentado pela primeira vez pelo sociólogo francês Henri Lefebvre em seu livro Le Droit à la Ville, de 1968, e sintetizado no seguinte trecho: “O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual de acessar recursos urbanos – é o direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. E, além disso, é mais comum do que individual, já que a transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade para criar e recriar nossas cidades e a nós mesmos é um dos mais preciosos e, ainda assim, um dos mais negligenciados de nossos direitos humanos”.
No quadrilátero formado das vias São João, Conselheiro Crispiniano, Rio Branco e Dom José de Barros, a tradicional Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos está circundada de novos equipamentos que incentivam a permanência. “O entorno do local é heterogêneo: tem hotéis e prédios residenciais, comerciais, de serviços e institucionais. Então, apesar de ser o mesmo largo, atribuímos atividades diferentes a cada uma das áreas”, conta o arquiteto Gustavo Cedroni, do Metro, escritório que contribuiu para a iniciativa principalmente durante a fase final.
No lado voltado para a Galeria do Rock, criou-se um palco-tablado de compensado naval para shows sem afetar o uso público livre e contínuo do ponto, que serve de passagem e tem circulação intensa durante o dia.

Novos bancos, mesas, banheiros públicos e vagas para barraquinhas de comida olham para o núcleo com restaurantes a fim de intensificar tal tipo de consumo nesse trecho. Já os outros espaços, mais próximos de construções residenciais e hotéis, agora contam com parquinho colorido e deck de madeira. Essas últimas instalações, posicionadas atrás da igreja, são poupadas do movimento da rua graças ao desnível de 50 cm do terreno, oferecendo um oásis de descanso.
Assim como no Largo do Paissandu, a análise do entorno do Largo São Francisco foi essencial ao projeto. O caráter cívico do cenário, repleto de edifícios de órgãos públicos e colado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP), inspirou uma intervenção “mais monumental”, como classifica o arquiteto Gustavo Cedroni. O deck de 450 m² aparece como elemento principal, formado de platôs acomodados nos desníveis do terreno. Sua estrutura foi construída numa área antes ociosa, isolada por grades para impedir o acesso de moradores de rua. “Existe essa questão sobre o que fazer com o espaço público de modo que ele se torne seguro – se deve ser fechado ou ocupado. A prefeitura enxerga, desta vez, a ocupação como positiva. Ter gente presente que usa o local é a melhor forma de otimizar a segurança”, defende Cedroni.
O convite à permanência foi reforçado também com base na escolha de um mobiliário popular, portátil, colorido e de desfrute comum: cadeiras de praia reclináveis e guarda-sóis. Para os autores do projeto, isso favorece a identificação mais imediata dos transeuntes com o lugar, facilitando a compreensão de que o espaço está disponível para todos. “Mesmo assim, muitas pessoas perguntam quanto custa para alugar cada assento e ficam receosas de pegá-los. Isso prova como esse tipo de proposição é incomum por aqui”. Na Praia de Paulista, como a interferência tem sido carinhosamente apelidada, convivem os mais diversos perfis: idosos, crianças, estudantes, futuros advogados, empresários, moradores de rua etc.
Diariamente, a ONG Cidade Ativa realiza pesquisas nas instalações pedindo aos usuários que indiquem os elementos positivos da obra, assim como os pontos desfavoráveis e outras ideias capazes de melhorar o projeto. No painel pendurado dentro do contêiner de informações, o item com a maior aprovação da lista – muito à frente de todos os outros – refere-se aos novos banheiros públicos, que recebem centenas de “ok” da sociedade.
Além desses equipamentos escassos nas calçadas paulistanas, outras soluções que tornam os dois largos amigáveis e habitáveis são bancos, wi-fi gratuito e bicicletários, além de mudança nas faixas de pedestres e na sinalização de trânsito. Como o fluxo de pessoas a pé é mais expressivo do que o de veículos na região do Largo São Francisco, os arquitetos do Metro utilizaram dois monólitos a fim de reduzir uma pista da via de carros e aumentaram o trecho de pedestres. “O conceito trazido pelo Gehl Architects é superforte. Já que, por enquanto, nada tem a responsabilidade de durar para sempre, o método permite testar muito mais propostas para, então, avaliar o que deu certo e, assim, proceder até a implantação definitiva. Fora isso, para uma implementação oficial ser aprovada, ela tem de passar por diversas instâncias”, conclui Cedroni.
Com shows e exibições de filmes no telão ao ar livre, a programação cultural no largo se estende pela noite, período em que a região central ficava praticamente deserta. Felizmente, agora não mais.

 

Fonte:

http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/a-arte-de-conviver-823141.shtml?func=1&pag=0&fnt=14px

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