Jaime Lerner, por cidades mais humanas

O urbanista que conquistou o mundo com suas ideias inovadoras e geniais diz que suas energias continuam inteiramente voltadas para pensar – e melhorar - as cidades. Viaja, sem parar, espalhando seu conceito de Acupuntura Urbana e, em ocasiões especiais, canta rap de sua autoria com o tema favorito. Em dezembro, lançou livro de memórias – em forma de crônicas – durante abertura de exposição em sua homenagem, em Curitiba.

Jorge Eduardo Mosquera
Planeta Sustentável - 07/01/2014

 

Guto Tarasiuk

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O arquiteto e urbanista Jaime Lerner tem andado muito ocupado ultimamente. Em dezembro do ano passado, inaugurou, no Museu Oscar Niemeyer, a exposição Das Vozes da Cidade (que vai até 15/03), comemorativa aos seus 50 anos de carreira de arquiteto e, principalmente, urbanista. No mesmo evento, lançou despretensioso livro de memórias em forma de crônicas, Quem cria nasce todo dia (Travessa dos Editores), em que relata sua Curitiba da juventude, sua formação, carreira, viagens, família e amigos. Causos para se ler em roda de amigos, como ele gosta.
Mas é outro livro que tem feito dele um viajante pelo mundo. Acupuntura urbana foi lançado em 2003, pela Record - e há tempos esgotado no Brasil, mas com versão eletrônica disponível -, tem merecido tratamento vip pela editora Island Press, sediada em Washington, cujas publicações se concentram em temas marcantes como história, meio ambiente e desenvolvimento sustentável.
Em excursão digna de estrela de rock, em outubro Lerner lançou a versão em inglês do livro e fez palestras em Miami, Nova York, Toronto (Canadá), Chicago, San Francisco, San Jose e Los Angeles. Os americanos e canadenses adoraram os encontros: riram de suas piadas e, ao final, até cantaram com ele um rap de como viver e deixar viver uma cidade.
São conselhos simples que ele vem transmitindo desde que assumiu pela primeira vez a prefeitura de Curitiba, que voltou a ocupar mais duas vezes, assim como outras duas vezes o governo do Paraná, ao longo de mais de 30 anos. Foi em 1971 que o então jovem arquiteto de 34 anos, egresso dos quadros do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), aceitou ser nomeado prefeito da capital paranaense.
Já em maio do ano seguinte, o desconhecido prefeito estava em todas as bocas da cidade. Num final de semana, depois de penoso trabalho de articulação junto ao empresariado local, mudou completamente a rua XV de Novembro, a principal de Curitiba. Um trecho de três quarteirões foi fechado para veículos e na segunda-feira surgiu um calçadão ornado com luminárias, floreiras e bancos de praça. Os bares e lanchonetes ganharam espaço externo. A área virou Rua das Flores e a conhecida Boca Maldita - onde se concedeu uma estreita passagem para carros e caminhões de entregas - ganhou ares de ágora com sotaque ‘leite quente’.
Depois veio a revolução do transporte coletivo, com a construção de canaletas exclusivas para a circulação dos ônibus Expresso e a compra antecipada da passagem, e avanços na educação ambiental de toda a população - e não apenas nas escolas - graças a programas de separação de lixo. Só um exemplo: o programa Câmbio Verde, criado por Jaime Lerner nos anos 80, existe até hoje e consiste na troca de lixo reciclável por hortigranjeiros, peso por peso, nas comunidades carentes. Isso mesmo: lixo por comida.
Graças a esses e outros programas que inspiraram cidades brasileiras e do exterior, Curitiba ganhou prêmios de instituições variadas e até da ONU. Lerner, claro, também acumulou prêmios e importantes conquistas, entre as quais se destaca sua eleição, em 2002, à presidência da União Internacional de Arquitetos.
Bem longe - "e para sempre" - da política, o urbanista tem dedicado seus esforços a sua cruzada por cidades mais humanas. Acupuntura urbana, conceito criado pelo arquiteto e pensador finlandês Marco Casagrande, ganhou em Lerner seu maior defensor e parceiro.

Trata-se de combinar o desenho urbano de uma cidade com intervenções precisas em pontos de estrangulamento (de naturezas variadas) a fim de se restabelecer o fluxo de energia. Pensa-se a cidade como um ser vivo, pulsante. É assim que ele pensa Curitiba e todas as cidades, não importa a escala.
Jaime Lerner conversou com o Planeta Sustentável, do qual é conselheiro - por telefone, a seu pedido -, depois de receber por e-mail os temas a serem tratados na entrevista que segue.
O sr. tem demonstrado em palestras e entrevistas que a chave das cidades é a mobilidade. Discorra sobre isso.
Não falo de mobilidade no sentido de problema das cidades, mas da mobilidade, da sustentabilidade, da sociodiversidade fundamentais na vida das pessoas. Na questão da mobilidade existe um falso debate. A resposta não está no automóvel nem metrô. Temos que 84% dos deslocamentos ocorrem na superfície. Trata-se, então, de operar melhor a superfície, como "metronizar" o ônibus. Precisamos adotar o "smart" nas cidades: o smart metrô, o smart ônibus, o smart táxi, desenvolver uma combinação eficaz entre os modais. Já começa a surgir o transporte público individual, o carro elétrico alugado, com 20 quilômetros de autonomia (ele próprio tem um projeto assim). O automóvel de passeio, como o temos hoje, é o cigarro do futuro. É ele que congestiona as vias das cidades. O carro deve servir para outras finalidades, como viagem e lazer, não como meio de transporte urbano. As pessoas precisam ter um transporte público eficiente, smart, para que sejam incentivadas a deixar o carro em casa.

Outra ideia sua é a de "ruas portáteis". Como funcionam?

Essas ruas se destinam a regiões decadentes da cidade, qualquer cidade, mas isso leva tempo para se consolidar. Nessas regiões há movimento de dia e, à noite, tudo fica vazio. Precisamos, então, levar para lá uma oferta de lazer, consumo e serviços que atraia as pessoas e mantenha a região ocupada, viva. Um caso é o da região da Estação da Luz, em São Paulo. As "ruas portáteis" podem acontecer com sucesso também no Rio, em Copacabana, por exemplo, por meio de um trabalho com o comércio local e também os ambulantes. O resultado é um desenho que permite às pessoas terem noção de rua. Há bastante tempo encaminhei um projeto (por meio de seu escritório) à prefeitura do Rio, mas não aconteceu nada.

Em São Paulo, um dos problemas que merecem solução de acupuntura urbana é o Minhocão. O que fazer com ele? Derrubá-lo ou transformá-lo?

Penso que transformá-lo num parque é a melhor solução. Vejam o Highline, de Nova York, um parque linear suspenso bastante interessante. Mas não se deve dispensar a questão de segurança.

O mundo parte para um novo modelo, de mais baixas emissões de carbono. Sabemos que 80% das emissões se dão nas cidades. O que fazer?

A solução está nas cidades, sempre. A primeira coisa, como já disse, é usar menos o carro, dotando a cidade de um transporte público eficiente. Outra é trabalhar perto de casa. Eu, por exemplo, moro em frente ao meu escritório. Basta cruzar a rua. Quanto mais gente puder partir para essa solução, melhor para todos.
O sr. é um dos palestrantes convidados do TED (sigla em inglês para tecnologia, entretenimento e design), fundação americana sem fins lucrativos que leva ao mundo ideias de personalidades de várias atividades. Suas conferências são um sucesso. Como é essa experiência?
Lembro-me bem de minha primeira vez. Foi em Monterey, na Califórnia, há quase dez anos. Estavam na plateia o ex-presidente Clinton e o ex-vice Al Gore, o pessoal do Google, mais Richard Branson, da Virgin

Falei por 18 minutos e sabe quem fez um pocket show ao final de minha palestra? Bob Dylan. O TED tem mais de um bilhão de acompanhantes no mundo todo e está na Rússia, no Rio, em Buenos Aires. Há ainda o TEDx, que reúne pessoal das melhores universidades do mundo. Eles dão importância a tudo, sabem valorizar o que é importante.

Seu livro "Acupuntura Urbana" está com a edição brasileira esgotada e a edição pela Island Press promete ou já é um sucesso (o escritório de Lerner não tem números de vendagem). Vem atualização por aí?

Não, melhor deixar como está. "Acupuntura urbana" está cumprindo sua finalidade. É um livro leve, que procura mostrar o que é essencial para a discussão dos problemas e as soluções de uma cidade. Mas é preciso resolver a questão da burocracia. Tenho conversado com vários prefeitos, de cidades de todos os tamanhos, e todos reclamam da dificuldade de governar e implementar seus projetos. Estamos perdendo a chance de resolver os principais problemas. Sempre digo: nunca estivemos tão perto e ao mesmo tempo tão longe de alcançarmos o que buscamos.

A acupuntura urbana pode substituir o planejamento?

De maneira nenhuma. Para tudo é necessário planejamento. Mas há soluções que vêm da acupuntura urbana de forma rápida e eficaz, sem que se desfalque o orçamento (a separação do lixo é uma das soluções mais simples apontadas no livro). É fundamental ter uma visão global. Com o planejamento é preciso tempo. Com a acupuntura promovemos mudanças focais, trazendo nova energia para as cidades. Nesses casos não se pode esperar.

Em suas palestras recentes o sr. brinca em cortar um zero do orçamento e criar mais com menos. Como é isso?

Dinheiro demais atrapalha. É preciso saber criar, desenvolver soluções de corresponsabilidade, envolvendo também os cidadãos. As soluções podem ser encontradas em qualquer escala, não importando se é uma metrópole ou uma cidade pequena. Temos de transformar problemas em solução, com a atuação de todos, e não ficar apenas esperando que o poder público resolva.

No caso de São Paulo, exemplo entre as capitais, temos o avanço da bicicleta. Mas e o transporte de massa?

Penso que a tarifa é importante, mas a qualidade do transporte deve ser marcante. É louvável o esforço do prefeito Fernando Haddad em buscar uma cidade sustentável,mas ainda não se atendem demandas positivas de transporte de massa. Não se trata de subsídio, que é muito caro, onera demais o orçamento público. Mas há várias maneiras, como a desoneração tributária. E avanços, como o bilhete único e a passagem gratuita para idosos, por exemplo.

Voltando ao lançamento de "Acupuntura urbana" nos Estados Unidos e Canadá. Que tal a experiência? E o rap cantado ao final?

Já tinha estado em Barcelona, França e Japão. Agora foi também um sucesso, um roadshow inesquecível. Além dos encontros, foram mais de 40 entrevistas a emissoras de rádio e jornais. O rap surgiu quase naturalmente, quando preparei uma letra com os pontos importantes para as pessoas memorizarem. Quando encerrava a conversa, ainda faltavam dois minutos. Foi o tempo para cantar acompanhado pela plateia. Foi gratificante (Lerner cantou o mesmo rap em palestra no TED Talks, em 2007,  e durante reunião do conselho do Planeta Sustentável, do qual faz parte, em 2010; veja no vídeo que resume esse encontro, em 1’56’’).

E a política, ainda o seduz?

Deixei a política e os partidos em 2002. Não quero mais saber. Agora estou dirigindo todas as minhas energias para as cidades.

Fonte: http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/jaime-lerner-por-cidades-mais-humanas-825240.shtml?func=1&pag=0&fnt=14px

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