Quando começamos a estudar a arquitetura da idade média, não existiam obras que pudessem nos mostrar a via a seguir. Recordamos que então um grande número de mestres em arquitetura não admitiam com reservas a existência desses monumentos que cobrem o solo da Europa, e da França particularmente. A penas nos foi permitido o estudo de algum edifício da renascença francesa e italiana; quanto àqueles que foram construídos depois do Baixo Império até o século XV, não falávamos mais que para citar-lhes como produtos da ignorância e da barbárie. Se nos sentíssemos repletos por uma sorte de admiração misteriosa por nossas igrejas e nossos fortes franceses da idade média, não ousávamos admitir qualquer vínculo que nos parecesse uma sorte de depravação do gosto, de inclinação pouco confessável. E não obstante, por instinto, estávamos atraídos àqueles grandes monumentos cujos tesouros nos pareciam reservados àqueles que queriam dedicar-se a sua busca.
Após uma estadia de dois anos em Itália, estávamos mais vivamente impressionados ainda pelo aspecto de nossos edifícios franceses, da sagacidade e da ciência que presidiram sua execução, da unidade, da harmonia e do método seguido em sua construção como em seu paramento. Não obstante espíritos distinguidos já haviam aberto a via: aclarados pelos trabalhos e admiração de nossos vizinhos Ingleses, eles pensaram em classificar os edifícios por estilos e por épocas. Não estavam mais atados aos textos, a maior parte errôneos, mas admitiram uma classificação arqueológica baseada na observação dos monumentos em si mesmos.Os primeiros trabalhos de M. de Canmont fizeram ressaltar os caracteres bem repartidos entre as diferentes épocas da arquitetura francesa do Norte. Em 1831, M. Vitet endereçou ao ministro do interior um informe sobre os monumentos das províncias de Oise, Aisne, Nord, Marne e Pas-de-Calais, no qual o elegante escrivão assinalou à atenção do governo os tesouros incomuns, ainda que estivessem às nossas portas. Mais tarde, M. Mérimée perseguiu as pesquisas tão afortunadamente começadas por M. Vitet, e, percorrendo todas as antigas províncias da França, salvou da ruína quantidade de edifícios que pessoa alguma então pensava em resguardar, e que formam hoje em dia a riqueza e o orgulho das vilas que os possui. M. Didron expôs os poemas esculpidos e pintados que cobriam nossas catedrais, e perseguiu sem vacilo o vandalismo alastrado que pudessem levar a alguma obra de destruição. Mas, deve ser dito para nossa vergonha, os artistas ficavam atrás, os arquitetos percorriam a Itália, não começavam a abrir os olhos mais que à Gênova ou Florença; retornavam com seus portafólios repletos de estudos feitos sem crítica e sem ordem, e se metiam à obra sem haver posto um pé num monumento de seu país.
A Comissão de monumentos históricos instituída pelo ministro do interior começava não obstante a recrutar um pequeno número de artistas que ela encarregava de estudar e reparar alguns de nossos mais belos monumentos da idade média. É a esse impulso dado desde a origem com prudência que devemos a conservação dos melhores exemplos de nossa arquitetura nacional, uma afortunada revolução nos estudos da arquitetura, de haver podido estudar durante longos anos os edifícios que cobrem nossas províncias, e reunir os elementos desse livro que apresentamos hoje ao público. Em meio a dificuldades incessantes, com recursos mínimos, a Comissão de monumentos históricos obteve resultados imensos: por mais débil que seja essa homenagem da nossa boca, seria ingratidão não rendê-la: já que, conservando nossos edifícios, ela há modificado o curso dos estudos da arquitetura na França; ocupando-se do passado, ela se há fundado no porvir.
O que constitui as nacionalidades é o elo que une intimamente os diferentes períodos de sua existência; é preciso compadecer-se das pessoas que negam seu passado, posto que não têm futuro ante si! As civilizações que profundamente cavaram seu sulco na história são aquelas nas quais as tradições foram mais bem respeitadas, e cuja idade madura conservou todos os caracteres da infância. A civilização romana está aí para nos apresentar um exemplo bem impressionante disso que avançamos aqui; e que povo já teve mais respeito por seu berço que o povo romano! Politicamente falando, país algum, apesar das diferenças de origem bem marcadas, é fundado num princípio de unidade mais compacto que a França; não é pois nem justo nem sensato querer arrojar ao nada umas das causas dessa unidade: sua arte desde a decadência romana até a renascença.
Em efeito, as artes na França, do século IX ou XV, perseguiram uma marcha regular e lógica; elas reluziram na Inglaterra, na Alemanha, no norte da Espanha, e até na Itália, na Sicília e no Oriente. E não aproveitaríamos esse labor de numerosos séculos! Não conservaríamos e refutaríamos a reconhecer esses velhos títulos enviados com razão por toda Europa! Seríamos os últimos a estudar nossa própria língua? Os monumentos de pedra e de madeira perecem, seria tolice querer conservá-los e tentar prolongar sua existência a despeito das condições da matéria; mas o que não pode e não deve perecer, é o espírito que ergueu esses monumentos, pois esse espírito, é o nosso, é a alma do país. Na obra que entregamos hoje ao público, ensaiamos não somente dar numerosos exemplos de formas diversas adotadas pela arquitetura da idade média, seguindo uma ordem cronológica, mas sobretudo e antes de tudo, de fazer conhecer as razões de ser dessas formas, os princípios que lhes foram admitidos, os modos e as ideias em meio dos quais elas tiveram nascimento. Pareceu-nos difícil render contas das transformações sucessivas das artes da arquitetura sem dar ao mesmo tempo uma visão da civilização da que a arquitetura é como seu envelope; e se a tarefa se encontrar além de nossas forças, haveremos ao menos aberto uma via nova a percorrer, posto que não saberíamos admitir o estudo da vestimenta independentemente do homem que a porta. Agora, com toda simpatia por tal ou tal forma de arte posta de lado, fomos surpreendidos pela harmonia completa que existe entre as artes da idade média e o espírito dos povos ao meio dos quais elas foram desenvolvidas. Do dia em que a civilização da idade média se sente viva, ela tende a progredir rapidamente, procedendo através de uma série de ensaios sem deter-se um instante; a penas entreviu um princípio, senão que deduziu as consequências, e chegando prontamente ao abuso sem dar-se tempo de desenvolver seu tema: está aí o lado débil, mas também o lado instrutivo das artes dos séculos XII ao XVI. As artes compreendidas nesse período de três séculos não podem, por assim dizer, ser captadas em um ponto; são uma cadeia ininterrupta em que todos os anéis são atados com pressa pelas leis imperiosas da lógica. Querer escrever uma história da arquitetura da idade média, seria talvez tentar o impossível, posto que seria necessário abarcar de uma vez e fazer marchar paralelamente a história religiosa, política, feudal e civil de inúmeros povos; seria necessário constatar as influências diversas que aportaram seus elementos em graus diferentes em tal ou tal região; encontrar o lugar dessas influências, analisar suas misturas e definir os resultados; dar conta das tradições locais, dos gostos e dos modos das populações, das leis impostas pelo emprego dos materiais, das relações comerciais, do gênio particular dos homens que exerceram uma ação nos acontecimentos, seja acelerando a marcha natural, seja contornando-a; não perder de vista as buscas incessantes de uma civilização que se forma, e embeber-se pelo espírito enciclopédico, religioso e filosófico da idade média. Não é de hoje que as nações cristãs ocidentais têm escrito sobre suas bandeiras a palavra «Progresso»; e quando dizem progresso, dizem labor, luta e transformação.
A civilização antiga é simples, uma: ela absorve em lugar de se repartir. Toda outra é a civilização cristã: ela recebe e dá; é o movimento, a divergência sem interrupção possível. Essas duas civilizações tiveram necessariamente que proceder muito diferentemente na expressão de suas artes; pode-se lamentar, mas não ir de encontro a isso. Pode-se escrever uma história das artes egípcias, grega ou romana, porque essas artes seguem uma via cuja pendente regular monta ao apogeu e descende à decadência sem desviar-se; mas a vida de um homem não bastaria para descrever as transformações tão rápidas das artes da idade média, para buscar as causas dessas transformações, para contar um a um todos os encadeamentos dessa longa cadeia tão bem atada, ainda que composta por elementos tão diversos.
Pôde-se, quando os estudos arqueológicos sobre a idade média não faziam mais que pôr as primeiras balizas, tentar uma classificação totalmente convencional, e dividir as artes por períodos, por estilos primário, secundário, terciário, de transição, e supor que a civilização moderna havia procedido como nosso globo, cuja crosta muda de natureza a cada grande convulsão; mas de fato, essa classificação, tão satisfatória que pareça, não existiu, e da decadência romana à renascença do século XVI não há mais que uma série de transições sem etapas. Não é que queiramos aqui condenar um método que rendeu imensos serviços, que dispôs os pontos salientes, que pôs a primeira ordem nos estudos, e que permitiu capinar o terreno; mas, repetimos, essa classificação é de pura convenção, e cremos que o momento chegou de estudar a arte da idade média como se estuda o desenvolvimento e a vida de um ser animado que da infância chega à velhice por uma série de transformações insensíveis, e sem que seja possível dizer o dia em que cessa a infância e começa a velhice. Essas razões, nossa insuficiência talvez, nos determinaram a dar a esta obra a forma de um Dicionário. Essa forma, facilitando as buscas ao leitor, nos permite apresentar uma massa considerável de informações e exemplos que não poderiam encontrar seu lugar numa história, sem render o discurso confuso e quase ininteligível. Ela mostrou-nos, precisamente à causa da multiplicidade dos exemplos dados, que deve ser mais favorável aos estudos, melhor dar a reconhecer as diversas partes complicadas, mas rigorosamente deduzidas, dos elementos que entram na composição de nossos monumentos da idade média, pois ela nos obriga, por assim dizer, a dissecá-las separadamente, enquanto descrevendo as funções e as transformações de suas diversas partes. Não ignoramos que essa complicação das artes da idade média, a diversidade de sua origem, e essa busca incessante do melhor que chega rapidamente ao abuso, repeliram muitos espíritos, foram causa da repulsão que eles experimentavam e que experimentam ainda em prol de um estudo cuja meta não aparece claramente. É mais curto negar que estudar: durante muito tempo não quisemos ver nesse desenvolvimento de uma das faculdades intelectuais de nosso país mais que o caos, a ausência de toda ordem, de toda razão; e não obstante, quando penetramos o centro desse caos, quando vemos surgir uma a uma as fontes da arte da arquitetura da idade média, quando tomamos a pena de seguir seu curso, descobrimos logo a pendente natural à qual todas elas tendem, e quanto ela são fecundas. É preciso reconhecer que o tempo da negação cega está já longe de nós: nosso século busca rever o passado; ele parece reconhecer (e nisso cremos que ele está em verdade) que para se traçar um caminho no porvir, é preciso saber de onde viemos, aproveitar tudo aquilo que os séculos precedentes laboriosamente acumularam. Esse sentimento é qualquer coisa mais profunda que uma reação contra o espírito destrutor do século passado, é uma necessidade do momento; e se algumas exagerações afligiram os espíritos sérios, se o amor do passado houver sido empurrado ao fanatismo, não deixa de estar no fundo da vida intelectual de nossa época uma tendência geral e muito pronunciada aos estudos históricos, quer pertençam à política, à legislação, às letras ou às artes. Basta, para convencer-se (se essa observação precisasse apoiar-se sobre provas), ver com que avidez o público na França, na Inglaterra e na Alemanha, lançam-se sobre todas as obras que tratem da história ou da arqueologia, com que ímpeto os erros são assinalados, os monumentos e os textos postos à luz. Parece que as descobertas novas vêm em ajuda desse movimento geral. No momento em que a mão dos artistas não bastava para recolher os restos tão numerosos e tão preciosos de nossos edifícios antigos, aparece a fotografia, que forma em alguns anos um inventário fiel desses remanescentes. Sábias disposições administrativas reúnem e centralizam os documentos dispersos de nossa história; as províncias, as vilas, veem as sociedades se fundarem em seu seio pela conservação dos monumentos poupados pelas revoluções e pela especulação; o orçamento do Estado, ao meio das crises políticas mais graves, não cessa de reunir em suas colônias somas importantes para salvar da ruína tantas obras de arte há muito tempo caídas no esquecimento. E esse movimento não segue as flutuações de uma moda, ele é constante, é a cada dia mais marcado, e, após ter tido nascimento em meio àqueles homens esclarecidos, difunde-se pouco a pouco nas massas; é preciso dizer mesmo que ele é sobretudo pronunciado nas classes industriais e obreiras, entre homens nos quais o instinto atua mais que a educação: eles parecem reconhecer-se nessas obras oriundas do gênio nacional.
Quando se trata de fazer uso ou dar continuidade a obras dos séculos passados, não é de baixo que nos vêm as dificuldades, e os executantes jamais nos faltam. Mas é precisamente porque essa tendência é outra coisa mais que uma moda ou uma reação, que é importante aportar uma escolha cuidadosa, uma crítica imparcial e severa, no estudo e no emprego dos materiais que possam contribuir a devolver a nosso país uma arte conforme a seu gênio. Se esse estudo for incompleto, estrito, ele será estéril e fará mais mal que bem; ele aumentará a confusão e a anarquia nas quais as artes caíram desde tão só cinquenta anos, e que nos conduziria à decadência; ele aportará um elemento dissolvente a mais. Se, ao contrário, esse estudo for dirigido com inteligência e zelo; se o ensinamento elevado o adota francamente e detém assim seus desvios, reúne em suas mãos tantos esforços que estão perdidos por falta de um centro, os resultados não tardarão: a arte da arquitetura retomará o posto que lhe convém numa nação eminentemente criadora.
Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi
Referência: Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc, “Préface”, em seu Dictionnaire Raisonné de L'Architecture Française du XIe au XVe siècle, Tomo I, pp.I-VIII, 1854-1868.
Fonte:Igor Fracalossi. "Dicionário Razoado da Arquitetura Francesa: Prefácio [Parte I/II] / Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc" 16 Apr 2015. ArchDaily Brasil. Acessado 17 Abr 2015. http://www.archdaily.com.br/br/765283/dicionario-razoado-da-arquitetura-francesa-prefacio-parte-i-ii-eugene-emmanuel-viollet-le-duc
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