A cidade e suas múltiplas leituras

Quando se pauta a revisão do Plano Diretor,forma-se uma expectativa generalizada, como se fosse a “salvação da lavoura” a ser legislada. Pauta legítima que ainda ignora sua alma mater, já que a essência do debate acaba sendo conduzida pelo pensamento hegemônico, fixado na estratégia tecnocrata do que é concreto, com apelo economicista. O subjetivo e o invisível não são copercebidos, muito menos os seus custos, não sendo assim planejados e, portanto, gestionados. Por estarem atreladas a um processo cognitivo, as leituras da cidade são múltiplas, e é aí que se descortina um cenário de oportunidades. Revelam-se outras urgências!

Este tradicional modelo de planejamento passa a ser contrariado por formas heterodoxas de copercepção do território. O conjunto dessas formas é o maior ativo intelectual possível: a conversa significativa entre áreas do conhecimento interconectadas que, por não ser propositada, ocasiona a prática fragmentada; entretanto, a cidade, ao ser considerada como um todo orgânico, passa a ser tratada como um corpo sistêmico, dinâmico, desequilibrado, vulnerável e em constante crise existencial, pois sempre se transforma com as conexões sociais e materiais que emergem e que, a priori, deveriam ser neutralizadas pelas intervenções públicas a favor do cumprimento da sua função social.

Admite-se a existência do quarto setor caracterizado pelas relações de empoderamento, onde a cocriação é a maneira de se romper tais modelos tradicionais?

A consciência que surge da inteligência coletiva compartilhada é a força comunitária e empreendedora que conduz a busca da verdade e a interlocução entre os diversos grupos, se assim representantes da sociedade civil organizada, ou até mesmo pela força dos indivíduos, atores que se livram dos seus papéis institucionais e mantêm laços espirituais que os fortalecem como ser humano e como protagonista social. O indivíduo não é o anfitrião que deveria ser desse processo, pois é conduzido pela cegueira frente ao mecanicismo da sua sobrevivência.

A jornada que insiste pela manutenção de uma “receita” metodológica sistematizada e orçada por temas “da vez”, validada pelas inúmeras audiências públicas, expõe o senso crítico, pois os preceitos das conversas significativas que revelam as vísceras e os potenciais humanos e sociais são mascarados pelos interesses desalinhados, ora do Estado, ora do mercado, ora das ONGs, e que se distanciam dos propósitos mais divinos de um lugar e do seu povo. O discurso se torna repetitivo, voltado à representação imagética, e nada inovador. Não se atenta ao chamado da construção das raízes futuras que possam, na sua plenitude, revolucionar e transformar aqueles que mais necessitam: os que permanecem na sua alienante zona de conforto ou os que estão à margem de todo esse sistema antropofágico. Basta andar pelos cantos mais remotos da cidade, ou pelos cantos mais destacados pela impessoalidade do “não lugar”: efêmero, sem identidade, terra de ninguém. A lavoura não está salva, pois não há colheita.

Mapeamos os “não lugares”, receptivos ao nosso imaginário e à nossa pertença, para que possamos descobrir a verdade enigmática da sustentabilidade e dos seus valores e significados culturais.

Plano Diretor de Curitiba: decifra-me ou te devoro!

Ou, te espero daqui a mais dez anos.

Carlos Nigro

Carlos Nigro, arquiteto e urbanista, é conselheiro do Instituto de Arquitetos do Brasil e do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Paraná, decano da Escola de Arquitetura e Design da PUCPR e autor do livro (In)Sustentabilidade Urbana.

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