Arte Vazada


Colaborador Marcella Oliveira



 Foto: Celso Junior




Nascidos em Pernambuco e criados em Brasília, os cobogós são o símbolo do modernismo arquitetônico
No amplo corredor de acesso a um apartamento qualquer da Asa Sul, vê-se uma parede toda furada. Um morador o percorre para chegar até a sua porta. O vento e a brisa circulam livremente. As sombras uniformes pintam o chão e a parede. O barulho das cigarras, que cantam em árvores próximas, parece estar do lado de dentro. A chuva, quando forte, entra sem pedir licença. A beleza e o charme dos primeiros blocos da Capital clamam o ideal de uma moderna arquitetura que perdeu espaço para a funcionalidade das construções contemporâneas.
Mas, por mais que surjam prédios cheios de inovações tecnológicas, são os quadradinhos de boa parte dos blocos do Plano Piloto que se tornaram a cara de Brasília.  O símbolo da liberdade dos brasileiros que viram surgir uma cidade moderna misturada ao barro vermelho do Planalto Central foi refletido nas primeiras construções. As superquadras seguiram uma mesma característica, com até 11 blocos posicionados simetricamente, térreo com livre circulação, com a utilização de pilotis, e a fachada com paredes “furadas”, chamadas de cobogós.
Havia a intenção de criar uma amplitude, além de permitir a entrada do vento e da luz solar. Os cobogós eram um recurso que ajudava a evitar a monotonia, definir as fachadas e modelar o visual das superquadras.  A arquitetura de Brasília é uma referência tão grande que os cobogós, apesar de terem sido criados em Pernambuco no início dos anos 1920 e utilizados em construções no Brasil inteiro, são uma marca da cidade, mesmo que muitas vezes as pessoas não saibam seu nome. “Era um dos elementos que se dispunha para compor a estética da arquitetura moderna, por isso foi muito usado em Brasília”, explica o arquiteto e professor da Universidade de Brasília (UnB), Paulo Marcos Paiva de Oliveira.




Os arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa adotaram o elemento vazado em muitos de seus projetos, ainda no Rio de Janeiro. E, claro, trouxeram para a nova Capital. Na Asa Sul, eles são unanimidade. Quase todas as superquadras têm prédios com os cobogós, seja no corredor de acesso aos apartamentos ou na área de serviço. Eles são vistos também na Escola Parque da 308 Sul, no Elefante Branco e na Escola Classe 108 Sul. Na Asa Norte, foram mais utilizados nas áreas de serviços. Não é difícil encontrá-los em quadras como a 206 Norte, que tem prédios projetados pelo arquiteto Marcílio Ferreira, e inúmeras outras, como a 205 Norte e a 416 Norte.
Na Universidade de Brasília (UnB), o prédio do Instituto de Química, projetado pelo arquiteto Aleixo Furtado, tem algumas paredes deles. São modernos e coloridos, deixam o prédio mais bonito, além de oferecerem ventilação e iluminação naturais. A ideia de usar o cobogó foi para evitar que mau cheiro ficasse em áreas fechadas, como acontecia quando os laboratórios funcionavam no subsolo. Ainda na UnB, alguns prédios da Colina, área residencial dos professores e funcionários da universidade, têm cobogós na área de serviço, os projetados pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé.
Já em outros, projetados por Paulo Marcos Paiva de Oliveira, foram usados nos pilotis, para dar mais intimidade aos apartamentos dos zeladores. “Eu não queria as janelinhas altas. Quis janelas maiores, mas protegidas. Então, coloquei cobogós na frente”, diz Paulo. O projeto original do Brasília Palace Hotel tinha cobogós nos corredores de acesso aos apartamentos. Mas, quando foi reconstruído após pegar fogo, eles foram substituídos por janelas. Também foram utilizados em construções mais recentes, como a Biblioteca Nacional de Brasília, projeto de Oscar Niemeyer.




Funcionalidade
A principal função dos cobogós é controlar a entrada da luz natural e a ventilação. E apesar dessa sensação de liberdade, também dão privacidade. “O interessante é que eles nos dão uma boa visão de dentro para fora do edifício. Já quem vê de fora para dentro tem dificuldade de identificar, pelo menos de dia, o que acontece internamente. Há uma privacidade”, explica o arquiteto Paulo Marcos. Além disso, são uma opção mais em conta para as construtoras, pois saem mais barato que usar esquadrias. E muitas fábricas passaram a produzi-los.
Em Brasília, não se pensou nos meses mais frios. “Como a maioria dos arquitetos que projetaram os primeiros prédios vieram do calor do Rio de Janeiro e ainda não se conhecia o clima do Cerrado, eram elementos comuns nos projetos”, lembra o arquiteto. Para os dias quentes, sempre foi útil, já que naquela época não se usava muito ar-condicionado. Mas o que não sabiam era que há dias frios no Cerrado. “Aqui, é preciso ter cuidado com o uso.




Em salas e quartos, por exemplo, não são recomendados, pois temos madrugadas frias”, diz Paulo Marcos. A arquitetura moderna é inspiração para muitos arquitetos da cidade e, como os cobogós são a cara de Brasília, não é difícil encontrá-los em projetos diversos, como lojas, restaurantes e residências. “Hoje, há uma infinidade de tipos e cores, e o próprio arquiteto pode desenhá-lo. Ele nunca vai sair de moda”, diz o arquiteto Ney Lima. “Recentemente usei na fachada de uma casa no Lago Norte, serviu como elemento decorativo e também para fazer a blindagem, por dar privacidade”, conta.
O cobogó pode ser usado ainda em varandas, áreas de serviço e áreas semiabertas. “Mas como ele não impede o ruído nem a poeira, é preciso cuidado em sua utilização”, alerta Ney Lima. Por conta disso, em vários prédios do Plano Piloto observa-se que os moradores os fecharam com blindex ou armários, também para impedir a entrada de água da chuva e bichos. Isso já gerou confusão em muitos condomínios.
Há quem ame e há quem odeie. Pela sua beleza arquitetônica, o cobogó também passou a ser utilizado por designers de interiores em projetos dentro de casas, apartamentos, restaurantes e lojas, na divisão de ambientes. Ganhou cores e formatos diferentes. Originalmente feito em cimento e tijolo, passou a ser produzido em cerâmica, vidro e ainda em adesivos, muito utilizados em banheiros e cozinhas. Arredondados, triangulares, desenhados. Verdadeiras obras de arte contemporâneas. Do lado de dentro, eles dão charme e características brasilienses e, muitas vezes, são usados junto com um projeto de iluminação, para destacar.
Dia a dia
Há um ano, quando foi comprar um imóvel para viver com o namorado, a arquiteta Larissa Sudbrack, 27 anos, fez questão de procurar na 108 Sul. Queria morar em uma das primeiras quadras de Brasília. Encontrou um apartamento de canto, com cobogós na cozinha e na área de serviço, além do corredor. Como o morador antigo tampou os cobogós, durante a reforma, com o projeto da cozinha integrada com a sala, optou por abrir para iluminar mais o ambiente.




“Foi quase um trabalho de restauro, com muito cuidado para manter cada abertura. O cobogó é um elemento muito bacana, não tem como não gostar”, opina. Se os prédios com cobogós fazem parte da história, quem mora neles também. A aposentada Suely de Roure, de 67 anos, conheceu Brasília durante a inauguração e há 40 anos mora no bloco D na 106 Sul, do qual é síndica há mais de uma década. No térreo, a placa indica que é o primeiro prédio residencial inaugurado pelo próprio Juscelino Kubistchek em Brasília.
“Acho lindos os cobogós. Para mim, o melhor é não precisar ligar a luz durante o dia, pois a claridade natural é ótima. Acho muito significativo morar em um prédio tão característico da cidade”, revela. A pioneira Maria Marta Cintra chegou em Brasília dois dias depois da inauguração da nova Capital. Sempre morou em prédios com cobogós. Hoje, vive na 104 Sul. A filha, Isabella, mora na 106 Sul, também em bloco com os elementos vazados. “A gente brinca que morar nesses prédios que fazem parte da história de Brasília é como viver em Manhattan. E, mesmo vivendo em apartamento, os cobogós nos dão a sensação de liberdade, de espaço”, diz Isabella.




Mas nem só luz e vento passa pelo cobogó. A professora Beatriz Oliveira, de 52 anos, conta que na infância, no prédio onde morava na 305 Sul, os pombos entravam pela abertura. “Eles levavam os gravetos até os vãos e faziam os ninhos. Acompanhávamos todo o processo. Era um verdadeiro pombal. A diversão da nossa infância”, lembra. Os morcegos também eram presença constante. Até que sua mãe resolveu fechar com blindex. “Acho que os cobogós dão um pouco de privacidade na área de serviço, as roupas não ficam expostas para quem passa na rua”, diz a professora.
Origem
O termo cobogó surgiu década de 1920, em Recife (PE), para denominar a utilização de aberturas nas construções que permitiam a entrada da luz solar e da ventilação. É a junção dos sobrenomes dos engenheiros português Amadeu Oliveira Coimbra, alemão Ernesto August Boeckmann e brasileiro Antônio de Góis, criadores da técnica. “A utilização desse elemento vazado começou a se difundir pelos portugueses, mas antes disso os árabes já faziam”, diz o arquiteto Paulo Marcos. O primeiro uso de cobogó em edifício público é em um prédio no Alto da Sé, em Olinda (PE), construído em 1934, um projeto do arquiteto mineiro Luis Nunes. O prédio de seis andares é a antiga Caixa d’água de Olinda e uma de suas fachadas é inteira vazada com cobogós, e hoje é um mirante.




Pode-se dizer que os cobogós são uma herança da cultura árabe. Há milhares de anos são usados os muxarabis para fechar parcialmente ambientes. “Faz parte da arquitetura islâmica e também é muito utilizado na península ibérica”, diz Paulo  Marcos. Eles têm função parecida, apesar de serem de matérias-primas diferentes. “Por serem feitos em madeira, os muxarabis são mais delicados”, explica o arquiteto. Paredes ou detalhes como os cobogós e muxarabis podem ser vistos em muitas construções pelo mundo, como na Mesquita de Córdoba, na Espanha; no Ministério das Relações Exteriores, em Lima, no Peru. Cidades coloniais brasileiras também têm muitos desses elementos, como nas varandas do Grande Hotel, em Ouro Preto, projeto de Oscar Niemeyer. Os muxarabis são muito encontrados em móveis e até em confessionários de igrejas.

Fonte: http://gpsbrasilia.com.br/news/p:0/idp:31943/nm:Arte-Vazada/

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