Lelé e o star system high-tech: a obra de Lelé e as práticas sustentáveis na arquitetura contemporânea internacional

Por Ana Gabriella Lima Guimarães
Edição 244 - Julho/2014

Arquivo João Filgueiras Lima, Lelé

Croquis e perspectiva do Sarah Fortaleza mostram o arco que abriga os sete pavimentos do bloco de internação, criando um espaço ajardinado com dimensões generosas, voltado ao desenvolvimento de atividades terapêuticas, de lazer e convivência
João Filgueiras Lima, Lelé, estabelece a partir da década de 1990 vinculações com a produção recente do star system high-tech internacional pelo modo com o qual os contornos formais, funcionais e tecnológicos são admitidos em sua obra, uma resposta aos grandes problemas em debate na virada para o século 21. Questões de alta tecnologia em arquitetura, eficiência energética, conforto ambiental, limites de recursos naturais, economia dos meios e sustentabilidade são tratadas por Lelé - e também pelos arquitetos high-tech - como fundamentos para entender os desígnios de uma arquitetura (esteticamente limpa, racionalmente construída, ambientalmente responsável e socialmente engajada) que se lança como expressão renovada por um novo conceito de modernidade.

Arquivo João Filgueiras Lima, Lelé


Croquis e perspectiva do Sarah Fortaleza mostram o arco que abriga os sete pavimentos do bloco de internação, criando um espaço ajardinado com dimensões generosas, voltado ao desenvolvimento de atividades terapêuticas, de lazer e convivência
Nas últimas décadas, a palavra sustentabilidade tornou- se uma espécie de jargão empregado extensivamente por arquitetos, políticos, economistas, sociólogos e ambientalistas para definir um conjunto de intenções tão ambiciosas que, para serem consolidadas, necessitariam, na mesma grandeza, de uma reformulação ética e organizacional das bases sobre as quais estão estruturadas as sociedades globalizadas, ou seja, uma mudança das políticas econômicas, do modelo de produção capitalista e do estilo de vida que instituímos.
Frente às possíveis interpretações acerca do termo sustentabilidade, tornou-se frequente associá-lo às questões ecológicas e econômicas como denominadores comuns à preservação da vida no planeta, e sob o qual estão subjugadas todas as outras formas de sustentabilidade, a exemplo do que hoje se entende por política, agricultura, cidade e arquitetura sustentável, conformadas como categorias derivadas do mesmo tema.

Arquivo João Filgueiras Lima, Lelé
Cobertura em arco do Sarah Fortaleza: detalhe da fixação do painel tipo colmeia com a torre de circulação

Lelé apostou na proposição de modelos que, viabilizados pela indústria, representassem tanto os interesses da sociedade moderna e global quanto as especificidades locais. Seu trabalho prenuncia uma tendência a ser seguida como indicativo de uma linguagem universal e um saber prático, cujo potencial ideológico, estético, construtivo e tecnológico se torna evidente no conjunto de experiências consumadas ao longo dos seus 57 anos de atuação profissional.
Lelé figura como um dos raros, senão o único arquiteto brasileiro a manter uma produção alinhada com as grandes discussões da contemporaneidade. Ele se aproxima dos problemas de construção e de arquitetura, como um arquiteto que deposita, na alta tecnologia, a esperança de resolver parte dos problemas que assolam o planeta.
A relação entre Lelé e o star system high-tech está no modo como determinadas questões são similarmente tratadas em suas obras: a preocupação com os valores humanos e socioculturais; a concepção de estruturas formais que sintetizam as necessidades programáticas e funcionais do projeto, o diálogo com contexto e as potencialidades das tecnologias aplicadas; a busca da elegância e precisão do desenho arquitetônico e de soluções técnico-construtivas coerentes e limpas, o envolvimento com as práticas racionalizadas da construção, o compromisso com a pesquisa e inovação tecnológica por uma construção energeticamente eficiente e ambientalmente confortável e, sobretudo, o entendimento maior da arquitetura como processo, não apenas no conceito de organização produtiva do objeto arquitetônico, mas como um conjunto de conhecimentos acumulados e técnicas aprimoradas ao longo de sucessivas experiências projetuais.
Se a sustentabilidade é mesmo um novo paradigma, o que poderíamos dizer sobre as produções de Renzo Piano, Michael Hopkins, Norman Foster ou Lelé que priorizam as necessidades humanas e ambientais a despeito de tal modismo ou consciência tardia? As questões de eficiência e conforto ambiental não estão apenas implícitas, mas constitui requisitos essenciais à prática da profissão, independentemente das injunções políticas, sociais ou históricas deflagradas a qualquer tempo e lugar.
Lelé resume essa discussão com palavras assertivas. "Quando me perguntam sobre esse tema, eu simplesmente digo que sustentabilidade é um estado de espírito. Ou você tem ou não tem. Sim, nós podemos resolver vários problemas ambientais, mas isso depende de um saber, vontade e persistência", disse em entrevista à autora.

Foto: Paul Tyagi
Imagem do átrio interior e corte transversal do Evelina Children's Hospital, projeto de Hopkins Architects em Londres

Divulgação: Hopkins Architects
Imagem do átrio interior e corte transversal do Evelina Children's Hospital, projeto de Hopkins Architects em Londres

LELÉ E MICHAEL HOPKINS
Embora a arquitetura de Lelé opere com uma realidade diametralmente antagônica em relação a determinados exemplos que se apresentam nas sociedades culturalmente e socialmente desenvolvidas, é sensível a proximidade de seu trabalho com outras arquiteturas balizadas pelas questões ambientais. A respeito do que se realizou no Hospital Sarah Fortaleza (2001), o Evelina Children's Hospital (2005), desenhado por Michael Hopkins como parte da ampliação do St Thomas' Hospital em Londres, possui um enorme átrio, cujas semelhanças formais, funcionais e técnico-construtivas em relação ao projeto de Lelé comparecem também como uma resposta mais apropriada às limitações dimensionais da área disponível para sua implantação. Também integra a ala das enfermarias ao solário, criado para promover o conforto ambiental do edifício e oportunizar a socialização dos usuários. O resultado formal dos dois projetos é uma resposta criativa e hábil às condições impostas pelo terreno. No caso do hospital de Fortaleza, a escolha por um partido verticalizado adveio da existência de um bosque que ocupava grande parte do terreno destinado à construção. A deliberação de preservá-lo para o lazer e terapias ao ar livre implicou a redução significativa da área disponível para a implantação do edifício que, dessa forma, tornou-se insuficiente para a adoção de uma solução horizontalizada.
Na busca de prover o máximo de luz, ar, natureza e saúde aos ambientes internos, Lelé produziu, no gesto do arco que abriga os sete pavimentos do bloco de internação, a síntese formal de uma ação integralizada, criando um espaço ajardinado com dimensões generosas, voltado ao desenvolvimento de atividades terapêuticas, de lazer e convivência. O conforto ambiental do bloco de internação (ventilação natural e proteção contra incidência direta de raios solares) foi obtido por meio de lâminas metálicas fixadas em posição estratégica, formando um ângulo variável com o nível do piso em função de seu posicionamento ao longo da superfície circular segundo a qual estão dispostas.
Em contrapartida, a solução adotada por Hopkins responde à condição de um terreno restrito, faceado por construções e vias preexistentes. A concepção do grande átrio, abraçando a parte superior de três dos seis níveis, forma o coração social do edifício e é a chave da concepção global, proporcionando uma vista abrangente da cidade, permitindo também que a luz do dia inunde axialmente todo o percurso do átrio ao saguão previsto no piso térreo. Enquanto estratégia sustentável adotada no edifício, a cobertura metálica em arco atua durante o inverno como um coletor solar, e no verão, o espaço é naturalmente ventilado por efeito chaminé.

Arquivo João Filgueiras Lima, Lelé
Corte esquemático passando pelo auditório do Sara Rio


Desenho do Floating Concrete Pavilion, projeto de Santiago Calatrava (1989) para o lago em Lucerna, Suíça, que nunca se materializou

A identidade formal e as estratégias sustentáveis das propostas lançadas pelos dois arquitetos conformam-se como uma consequência direta das urgências e ações que estruturam o programa. A materialização de uma obra a partir da articulação de formas consistentes capazes de dar vida aos espaços que, bem mais do que uma área compartimentada da construção, é o lugar onde as atividades acontecem e as relações humanas são construídas.

LELÉ E SANTIAGO CALA
Os códigos formais da arquitetura de Lelé descendem de princípios estruturais e artifícios mecânicos estabelecidos ao adequado funcionamento do edifício. No Hospital Sarah Rio (2002/2009), o desenho da calota branca do auditório, coroada por uma semiesfera composta por pétalas de aço móveis, carrega em essência um argumento que transcende a ingênua ideia de que a forma nasce do traço despretensioso do arquiteto. Ao contrário, a forma é gerada por traços precisos - gestos que traduzem conhecimento e domínio técnico - necessários à resolução das contingências do programa, viabilidade construtiva e legibilidade da obra.

Arquivo João Filgueiras Lima, Lelé
 
Arquivo João Filgueiras Lima, Lelé/Celso Brando
Sarah Rio: esquema de abertura dos paineis móveis da enfermaria
Sarah Rio: foto mostra a montagem dos brises móveis do forro

O volume do edifício foi gerado pela translação de uma viga sinuosa ao redor de um eixo inclinado, o qual foi determinado em função da abertura superior, posicionada de modo a garantir a necessária incidência de luz natural sobre o palco. Quando fechada, a superfície interna da cúpula funciona como um grande espelho esférico que reflete os raios de luz produzidos pelas luminárias instaladas no topo da parte afunilada do corpo da construção.
O sistema móvel da calota do auditório ideado como recurso técnico fundamental à entrada de luz natural e consequente redução do consumo energético do edifício, também representa uma conquista em termos formais. O movimento descrito pelas grandes pétalas metálicas, auxiliado por um mecanismo motorizado, consegue transformar de maneira surpreendente o caráter imagético do edifício quando, ao longo do dia, a cobertura se abre e se fecha como uma flor.


 


Aberturas no teto e a cobertura verde da Academia de Ciências da Califórnia, de Renzo Piano
Mecanismo similar foi adotado por Santiago Calatrava na concepção do Floating Concrete Pavilion (1989). Embora esse projeto nunca tenha se materializado, o princípio de mobilidade continua sendo usado como base para as criações do arquiteto espanhol que, assim como Lelé, procuram modos de integrar movimento aos sistemas que compõem o corpo da edificação, explorando a ideia de "kinetic architectural components" (componentes arquitetônicos móveis) a favor da ampliação das potencialidades funcionais e estéticas da arquitetura.
Para além do impacto visual de estruturas que se articulam descrevendo movimentos poéticos, arrancando suspiros dos espectadores que, apartados da crítica, deixam-se seduzir pelo brilho aparente das performances tecnológicas, a arquitetura de Lelé possui o compromisso com a evolução do processo, a proposição de soluções inovadoras assistidas pela prática referenciada e na conscienciosa revisão de experiência anteriores.

LELÉ E RENZO PIANO
Ao confrontar os trabalhos de Lelé e Renzo Piano é possível identificar aproximações quanto à abordagem projetual amparada no uso de estratégias tecnológicas voltadas às questões ambientais. Tanto o Hospital Sarah Rio quanto o projeto do arquiteto italiano para Academia de Ciências da Califórnia (2000/2008) incorporam sistemas e elementos construtivos dinâmicos para prover luz e ventilação naturais aos espaços construídos. O conforto térmico do Sarah Rio foi viabilizado a partir de três princípios fundamentais: ventilação natural - o ar fresco penetra nas áreas de convivência, fisioterapia e hidroterapia pelo forro de painéis basculantes e do amplo sistema de abertura do teto arqueado; ventilação natural forçada - o ar captado pelas unidades fan-coil instaladas no piso técnico é injetado nos ambientes internos por um sistema de dutos visitáveis, e o ar quente é extraído pela abertura parcial dos elementos basculantes do teto plano; e ventilação artificial - o ar refrigerado que passa pelos dutos de ventilação é impulsionado pelas unidades fan-coil, onde é processada a circulação de água gelada produzida pela central frigorífica alocada no pavimento técnico. Todas as aberturas dos tetos são fechadas por um sistema motorizado acionado por interruptores ou controles remotos.
Na Academia de Ciências da Califórnia, além dos sistemas de abertura de janelas e claraboias acionadas automaticamente para promover a entrada de luz solar e a ventilação natural dos espaços, o arquiteto incorporou sistemas de iluminação com fotossensores, painéis fotovoltáicos, dentre outros recursos sofisticados que, ao mesmo tempo em que garantem bons resultados ao desempenho ambiental e eficiência energética da edificação, também presumem um alto custo de implantação e manutenção.
Enquanto os expoentes da cultura high-tech, livres de restrições orçamentárias, demonstram em suas atitudes projetuais a irrestrita confiança no poder da tecnologia como instrumento indispensável à criação de soluções lógicas, racionais e ecologicamente corretas para o mundo contemporâneo - assolado pela crise econômica e à beira de um colapso ecológico - Lelé apostou na inteligente solução do desenho de arquitetura e na integridade de um projeto que concilia o possível e o imaginável frente às injunções políticas, econômicas e materiais do seu País.
A obra de Lelé pioneiramente estabelece posições que antecedem ou são paralelas aos grandes temas ligados ao ambiente, recursos naturais, habitabilidade, energia e arquitetura sustentável, sem se subjugar aos estreitos limites técnicos ou tecnocráticos dessas questões, e lança respostas arquitetônicas cujos princípios extrapolam o local para alcançar uma dimensão universal. O caráter e o alcance de seu trabalho, embora não pretenda nem possa responder às carências do Brasil ou do mundo, ainda têm bastante a dizer como processos e raciocínios que podem inspirar e servir de referência ao que se faz na arquitetura.

BIBLIOGRAFIA
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GUIMARÃES. Ana Gabriella Lima. João Filgueiras Lima: O último dos modernistas. 2003. Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos LIMA, João Filgueiras (Lelé). Arquitetura: uma experiência na saúde. São Paulo, Romano Guerra Editora, 2012
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PRASSAD, Sunand. (Ed.). Changing hospital architecture. London, RIBA Publishing, 2008
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ANA GABRIELLA LIMA GUIMARÃES é arquiteta (FAUUFBA, 1997), com mestrado (2003) pela Escola de Engenharia de São Carlos da USP e doutorado (2010) pela FAUUSP. É professora de projeto e história, desde 2010, da Fiam-Faam

Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/244/artigo318126-1.aspx

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