Fernanda Querino Vieira e Sérgio Hespanha falam da visão crítica e produção arquitetônica do italiano Vittorio Gregotti

É notável a versatilidade de Vittorio Gregotti. O arquiteto italiano percorre os corredores da academia, as redações de revistas especializadas, as pranchetas de arquitetos. Em seu escritório, o Gregotti Associati, assina obras por todo o mundo, em projetos tão diversos quanto de planejamento urbano, arquitetura, design de interiores, exposições e desenho industrial

Por Fernanda Querino Vieira e Sérgio Hespanha

Edição 208 - Julho/2011

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Vittorio Gregotti nasceu em 10 de agosto de 1927 em Novara, em meio a uma Itália fascista. Formou-se pela Faculdade de Arquitetura do Instituto Politécnico de Milão em 1952 e consolidou sua carreira como arquiteto, professor e escritor, buscando integrar a atividade teórica à prática, como um exercício de coerência profissional.

Entre 1953 e 1955, foi editor da tradicional revista italiana de arquiteturaCasabella, da qual se tornou editor-chefe em 1955 e permaneceu até 1963. Gregotti buscou se posicionar contra as revistas de arquitetura cuja função se limitava a apresentá-la à semelhança das revistas de moda, e não como um meio de acelerar os processos de transformação da disciplina. Enquanto esteve à frente da Casabella, apostou na parcialidade, ao optar por uma publicação mais restritiva e crítica, no lugar de uma revista meramente informativa.

De 1963 a 1965, trabalhou nas revistas Il Verri e Edilizia Moderna, atuando como responsável pela seção de arquitetura, na primeira, e como diretor, na segunda. Em décadas subsequentes, colaborou com outros periódicos e foi também diretor de Casabella e de Rassegna.

Sua produção teórica inclui livros: escreveu 20 deles. Um dos mais destacados foi Território da arquitetura, de 1966. Foi concebido em um contexto de críticas severas aos postulados do modernismo, como as de Jane Jacobs, e consolidou Gregotti como integrante da Escola de Veneza - grupo oriundo do Instituto de Arquitetura da Universidade de Veneza (IAUV), encabeçado por Aldo Rossi.

Ainda que existissem perspectivas diferentes entre eles, tinham em comum a crítica aos preceitos modernistas que negavam a história e o contexto diante do qual a arquitetura encontraria suas especificidades, tendo sido considerados, portanto, neorracionalistas e neomarxistas. Contudo, incorpora o pensamento modernista do papel social fundamental da arquitetura com o pensamento pós-modernista, caracterizado pela necessidade de contextualização.

Vittorio Gregotti foi professor de composição arquitetônica do IAUV. Ensinou também na Faculdade de Arquitetura de Milão e de Palermo. Das Universidades de Tóquio, Buenos Aires, São Paulo, Lausanne, Harvard, Filadélfia, Princeton, Cambridge (Inglaterra) e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts foi professor visitante. A partir da década de 1990, recebeu vários títulos doctor honoris causa em centros universitários de países como a República Tcheca (1996), Romênia (1999) e Portugal (2003). Em 1996, tornou-se membro da Academia Europeia de Ciências e Artes, em Salzburgo, da BDA (Bund der Deutschen Architekten) em 1997 e, em 1999, membro honorário do American Institute of Architects (AIA).

Com sua vasta experiência acadêmica, Gregotti critica a fragmentação das faculdades de arquitetura, como um grupo de cursos, em certa medida, interessantes, mas que não têm um propósito claro a respeito da formação do arquiteto.

Sua visão crítica não se restringe ao ensino da arquitetura pelo mundo. Considera a arquitetura italiana dos últimos anos atrasada em relação à de outros países europeus e que suas contribuições do passado foram de muito maior relevância do que as de agora. Para ele, essa defasagem ocorre tanto no plano teórico quanto no prático. Gregotti aponta o poder público italiano, por vezes corrupto, como um grande responsável por esta redução, já que, por conta dele, diminuíram também as chances de mostrar a real necessidade da produção arquitetônica.

Sua busca projetual passa pela reflexão teórica, da mesma maneira que a reflexão teórica passa pela busca projetual. A escrita de livros, a colaboração com os periódicos e a atividade acadêmica têm em comum o ofício de arquiteto em sua busca por coerência. Gregotti acredita em uma vida própria da obra, caso contrário, ela resulta enfraquecida. O foco deve estar sobre a obra, que deve ser sempre discutida. Em sua opinião, a atual crise moral da arquitetura tem relação direta com o processo de valorização do autor, em detrimento da obra.

Em suas intervenções, considera a morfologia - a estrutura do ambiente encontrado antes do projeto - como um elemento-chave para a concepção projetual, entendendo a correlação entre natureza e ambiente construído como uma totalidade geográfica: aqui se revela a natureza pela ''medição'', modificação e utilização da paisagem. Em Gregotti, o contexto do projeto é amplamente valorizado, já que, com esta totalidade geográfica, o que se concebe de novo com a arquitetura e o urbanismo não se encontra desconectado de seu entorno. Dessa maneira, o projeto é resultado do reconhecimento do lugar como história, cultura e forma, criando uma arquitetura do contexto - que não será mimética. Para Gregotti, são as exceções que geram a arquitetura, por isso as soluções devem ser específicas a cada situação. Gregotti se alia aos que se utilizam de uma teoria do lugar e do genius loci, derivada da fenomenologia de Heidegger.

Tão importantes quanto o contexto são: simplicidade, ordem, organicidade e precisão, propriedades que Gregotti diagnostica como virtudes arquitetônicas hoje fora de moda.

Seus primeiros anos de trabalho foram marcados pelo racionalismo italiano, movimento anterior (reflexo do confronto entre Terragni e Piacentini), e sobretudo pelas parcerias com os arquitetos Ludovico Meneghetti e Giotto Stoppino, até 1968. Dez anos depois de ter recebido o Prêmio Internacional pela parte introdutória da 13a Trienal de Milão (1964), Vittorio Gregotti abre a empresa Gregotti Associati junto com Pierluigi Cerri, Pierluigi Nicolin, Hiromichi Matsui e Bruno Viganò. O grupo inicial sofre algumas reformulações, como a saída de Nicolin (1978), Viganò (1981), Matsui (1982) e Cerri (1998) e a entrada de Augusto Cagnardi (1981) e Michele Reginaldi (1998). A equipe atual é composta pelos dois últimos arquitetos e Vittorio Gregotti, além dos arquitetos associados. Ao longo de cinco décadas de trabalho, surgiram parcerias externas como as de Paolo Portuguesi, Ove Arup & Partners e MBM Arquitectes (J. Martorell, O. Bohigas e D. Mackay).

De 1969, estão os projetos do bairro IACP para 20 mil pessoas, na Zona Esterna Nord (ZEN), e dos novos departamentos de ­ciências da universidade em Parco d'Orleans, ambos em Palermo, Itália. As premissas para desenvolver o projeto do bairro foram o tecido urbano e o ambiente físico (uma área com vegetação nativa, mar e montanha), estabelecendo de que forma o contexto histórico e a contemporaneidade dialogariam entre si. O conceito da proposta estava no próprio sítio, o que evidencia a formulação da arquitetura do contexto nas obras gregottianas. O projeto foi resolvido com uma malha ortogonal, contendo fileiras de blocos de diferentes tamanhos, nos quais estão as unidades residenciais e seus acessos. A unidade básica do projeto é a metade do menor bloco, padronizando a distância entre cada um. Em cada bloco de habitação coletiva há um pátio para pedestres, com arborização, um metro acima do nível da estrada. O programa de apoio do bairro foi distribuído ao longo dos eixos da malha. Este projeto também foi vencedor de um concurso, mas não foi implantado por completo.

O projeto dos novos departamentos de ciências da Universidade de Palermo levou em conta os edifícios pré-existentes da universidade, construídos depois da Primeira Guerra Mundial. Foi concebido, então, como uma grande estrutura que pudesse reorganizar o tecido urbano do entorno e suas marcas territoriais. O complexo abriga os departamentos de química, física, biologia, matemática e geologia em três recintos que margeiam uma rampa de pequena inclinação ligada ao entorno. Três praças para pedestres foram dispostas à margem oeste do complexo para formar novos terrenos urbanos. As ligações não são feitas apenas no âmbito da cidade, mas também dentro dos blocos de departamentos, que têm suas funções de sala de conferência, laboratório e pesquisa interconectadas.

O projeto para a Universidade da Calábria (1973) segue uma constante no processo projetual de Gregotti, que parte da característica geográfica do terreno, uma vasta área montanhosa, para associar as diversas funções do edifício à morfologia pré-existente. Os blocos de departamentos criados obedeceram à topografia, que foi também utilizada para separar os tipos de acesso da universidade (pedestre, serviço e veículo), ligados por um mesmo píer. Nos intervalos entre blocos foram plantadas oliveiras, gerando uma alternância entre espaço construído e espaço natural.

Em 1980, foi aberta uma filial de Gregotti Associati em Veneza, o que colaborou para o aumento do volume de projetos desenvolvidos para esta cidade. Em 1984, outro escritório foi aberto em Lisboa, em parceria com a empresa Risco, de Manuel Salgado. Em 1988, torna-se Gregotti Associati International. Coincidindo com o auge do pós-modernismo, a década de 1980 foi importante para a consolidação da empresa na Itália e seu reconhecimento internacional. São desta época o desenvolvimento do bairro residencial em Cannaregio, em Veneza, o Estádio Olímpico de Barcelona e o Centro Cultural de Belém.

Desenvolvido entre 1986 e 1988, o Estádio Olímpico de Barcelona faz parte de um complexo esportivo para as olimpíadas de 1992. O projeto, vencedor de um concurso internacional em 1984, abarcou a renovação do estádio existente, centros de educação física e de imprensa e piscina. A estrutura existente, ­construída por Domenech e Montaner Jr. para a Exposição Internacional de 1929, foi mantida por seu valor simbólico. Desse modo, fora a estrutura metálica da tribuna principal, vistas do exterior as fachadas do estádio não se alteraram. Internamente, as mudanças foram mais notáveis: a capacidade foi ampliada de 20 mil para 65 mil assentos; a estrutura, modernizada; e o campo, diminuído em 12 metros para prover altura suficiente para requalificar as áreas existentes acima e criar novas abaixo.

Fruto da parceria com Manuel Salgado, o projeto do Centro Cultural de Belém, em Portugal, venceu a competição internacional em 1988. O partido predominantemente horizontal (110 mil m²), articula-se com a Torre de Belém, no estuário do rio Tejo, e com o Mosteiro dos Jeronimos a leste. Blocos funcionais perpendiculares à via principal foram dispostos ligando-os ao entorno, gerando um sistema de vias de ligação em cruz. Acompanha a via principal de pedestres uma série de serviços, gerando outro sistema de funções. O Centro é composto por três partes principais: museu de quatro andares, com um amplo salão de exposições (80 mil m²) e livraria; um teatro de ópera para 1,5 mil espectadores e outro para 400, ligados por um foyer; e a Sede da União Europeia (com recepção, restaurantes e áreas administrativas). Todo o Centro é revestido com o mesmo tipo de pedra, dando unidade ao volume.

Na década de 1990 foi mantida a atividade fora da Itália, inclusive em outros continentes, mas foi com um projeto na Itália que Gregotti sobressaiu. Desenvolveu uma série de edifícios em Bicocca, ao norte de Milão, em concurso promovido pela Pirelli e que Gregotti vence. Entre os vários edifícios concebidos, o Teatro Arcimboldi, a Sede e o Centro de Pesquisa da Pirelli, todos partem do projeto para a reurbanização desta antiga zona industrial, de 600 mil m2.

Bicocca foi requalificada, adotando o potencial de ligação de suas rodovias a outras regiões da Europa. Sua reurbanização visou ao uso misto da região, com área residencial, de pesquisa, industrial e de serviços, pensado não só para dentro de Bicocca, mas também para ampliar suas relações com o entorno, como um novo polo de referência. Desse modo, o Teatro Arcimboldi e as duas unidades da Pirelli representam a diversificação do uso do solo, trabalhando com pré-existências da arquitetura industrial (a exemplo da Sede da Pirelli, onde foi mantida uma torre de refrigeração de época anterior).

Ao longo de sua carreira, Gregotti venceu competições nacionais e internacionais. Nas intervenções no exterior, buscou desviar-se das tendências a folclorizar a arquitetura local ou, ao contrário, a impor um modelo europeu. São exemplos desta postura uma série de intervenções recentes em países do oriente, como o plano para a nova cidade de Pujiang (2001/2009), um novo bairro residencial também em Pujiang (2002/2003), o Promotion Center de Pujiang (2003/2004) e o Bund Central Business District (2003/2005), todos na China. Projetou também o Complexo Administrativo da Assembleia Nacional da Rússia (2002).

O entendimento de Gregotti da arquitetura, do urbanismo e da cultura o colocou distante de uma universalização modernista, mas também distante de uma visão historicista. O arquiteto entende as tradições locais como importantes elementos da composição arquitetônica e urbanística, mas seguramente visando a um futuro, ainda que também a ser depois ultrapassado. Pode-se afirmar que há um interesse quase urgente em Vittorio Gregotti em romper com as dicotomias e reconstruir regras a partir das contradições do mundo, como também a pretensão de permanecer atuando como projetista.

Gregotti pensa a arquitetura inserida com o urbanismo. Isso se expressa na dimensão e complexidade das estruturas que com frequência propôs, sempre articulando planos urbanísticos e projeto de complexos de edifícios; onde edificar significa ao mesmo tempo urbanizar. E aqui a materialidade da arquitetura está nos fundamentos de seu caráter essencial: tectônico, que, inclusive, Gregotti defende que se expresse nos detalhes construtivos. Desse modo, envolve, no projeto, considerações acerca de todas as escalas: territorial, urbana, da edificação e dos dispositivos que solucionam os aspectos construtivos, como são os detalhes.

Bibliografia

BARDA, Marisa. Revitalização da área Pirelli, Bicocca 1985 - 2000 em:http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.006/954

FRAMPTON, Kenneth. Historia crítica de la arquitectura moderna. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1993.

GREGOTTI, Vittorio. El territorio de la arquitectura. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1972.

NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura; antologia teórica 1965-1995. São Paulo, CosacNaify, 2006.

NOBRE, Ana Luiza. Entrevista a Vittorio Gregotti. Em: Revista AU (Editora PINI), edição 59, abril de 1995. In: http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/59/vittorio-gregotti-italia-24547-1.asp

Site: www.gregottiassociati.it

Fernanda Querino Vieira é arquiteta e urbanista
Sérgio Augusto Menezes Hespanha é arquiteto, urbanista e professor

Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/208/arquiteto-urbanista-professor-e-teorico-224379-1.aspx

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