O outro do outro: arquitetura moderna na América Latina

POR FERNANDO LUIZ LARA
Edição 254 - Maio/2015


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Escrever sobre arquitetura moderna em uma região tão vasta e tão diversa quanto a América Latina é como desbravar uma mata fechada sem cortar os cipós e as ramas. Explico a metáfora antes que os leitores achem que este professor ficou maluco de vez. Na todo-poderosa Inglaterra da última década do século 19, os Banister Fletcher (pai e filho de mesmo nome) publicaram A history of architecture on the comparative method. Neste livro clássico, havia uma ilustração que se tornou referência para muitas gerações seguintes: a árvore da arquitetura. Nesta árvore estão catalogados os estilos arquitetônicos da antiguidade até o momento da publicação (1896). Nas raízes da árvore estão as disciplinas afins que determinam a arquitetura: geografia, geologia, clima, religião, sociologia e história. Nos ramos estão todos os estilos tratados pelos historiadores, a antiguidade chinesa, indiana e mexicana; o gótico italiano, inglês e espanhol; a renascença belga, italiana a francesa, e por aí vai.
Interessa, para nossa metáfora, olhar com atenção para o tronco da árvore onde estão as arquiteturas grega, romana, romanesca e bem acima, como uma flor, a arquitetura norte-americana (chamada apenas de americana no bom estilo anglo-saxão).


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Escrever sobre arquitetura moderna na América Latina implica perceber que esta árvore é na verdade uma narrativa construída a posteriori. O que existe, bem ao gosto de Foucault e Lacan, são ramas e cipós que crescem de acordo com as condições do solo (contexto local) se apoiando em estruturas conceituais existentes. Como em uma árvore de caule trançado, a historiografia tradicional sempre construiu suas árvores trançando suas narrativas para constituir o tronco desejável.
Com o tempo, algumas ramas vão sendo retiradas e outras ramas adicionadas ao trançado. Em 2014, por exemplo, Alexander Tzonis e Liane Lefraive publicaram Architecture of regionalism in the age of globalization: Peaks and valleys in the flat world, um estudo do século 20 partindo do ponto de vista do regionalismo que desafia a historiografia tradicional do tronco Bauhaus-Corbusier- International Style.
Por isso, o trabalho do historiador da arquitetura ou de qualquer outra disciplina é destrançar e retrançar estes cipós. No caso da arquitetura moderna na América Latina, o trabalho se torna ainda mais complexo pela ausência de volumes abrangentes anteriores que sirvam como mapa ou como troncos a serem destrançados. Mais interessante é perceber que cada um dos países constituintes da região que comumente chamamos América Latina tem sua narrativa de modernidade própria, efusivamente trançada com as ramas europeias da Bauhaus, de Le Corbusier ou dos CIAM; ou com as ramas norte-americanas de Frank Lloyd Wright, Louis Kahn ou da narrativa hegemônica do MoMA.
O trabalho de historicizar a arquitetura moderna implica então desmontar cada uma dessas narrativas nacionais para tecer algo novo. Não para impor um tronco como os Banister Fletcher fizeram, tampouco para negar as importantes influências europeias e, em menor grau, as norte-americanas, mas para propor um mapa mais completo que nos ajude a navegar pela rica experiência de modernidade americana entre os paralelos 30 Norte e 60 Sul.
Isso porque, durante os séculos 19 e 20, as condições políticas, econômicas e materiais para a modernização foram construídas pela América Latina afora, resultando em modernismos diversos. Modernismos entendidos aqui no plural como os efeitos da modernização sobre a arte e a cultura bem como sobre movimentos culturais e estilos; que se desenvolveram como parte de iniciativas e aspirações mais amplas.
Muitas das expressões arquitetônicas na América Latina do século 20 refletem uma condição paradoxal de importação e reconsideração do estrangeiro vis-à-vis às culturas locais. Isso mostra um interesse em tradições, em histórias, no caráter do povo e de sua cultura em cada contexto, bem como na legibilidade destes dentro da forma arquitetônica. Ao mesmo tempo, é fundamental entender que esses modernismos se formam em torno de experimentações com novas linguagens, formas e materiais.
Essas formas e ideias resultantes se reproduziram em toda a América Latina como resultado de viagens, migrações, publicações e influências. Seus resultados são absolutamente singulares, tanto em termos de materialidade e contexto quanto em termos de possibilidades que, em última análise, dão valências individuais a produções semelhantes. Por isso, torna-se fundamental o estudo tanto do trançado do tronco narrativo quanto da individualidade de cada rama.

ARQUITETURA NA AMÉRICA LATINA X ARQUITETURA LATINO-AMERICANA
Escrever as histórias da Arquitetura Moderna na América Latina é um desafio hercúleo e frustrante por definição. Hercúleo por conta do número, do tamanho e da diversidade das manifestações modernas no continente. Frustrante porque todo trançado de uma narrativa é provisório e incompleto. "Américas Latinas" são várias e diversas. Qualquer tentativa de resumir ou condensar em um conceito único uma região tão vasta estaria fadada ao fracasso.
Cabe então seguir um modelo aberto de genealogia à maneira de Foucault e Tafuri e, como bem lembra Jorge Francisco Liernur, falar de uma arquitetura na América Latina e não de uma arquitetura latino-americana. A contração na (preposição em + artigo definido a) diz da posição geográfica das arquiteturas em questão e não implica nenhum tipo de essência definidora a priori. Isto não quer dizer que não existam semelhanças e paralelos entre as arquiteturas na América Latina. Existem, são muitas e bastante significativas.
No entanto, o problema se torna ainda maior quando, evitando um projeto de história geral, resta enfrentar os limites borrados da própria ideia de América Latina. Como definir a região? Seria o que se localiza ao sul do Texas? Ou os territórios anteriormente colonizados por Portugal e Espanha?
O conceito de América Latina foi usado pela primeira vez por intelectuais franceses no século 19 que buscavam marcar os países de línguas neolatinas como sua esfera de influência. Como toda a representação (ou trançado, para usar a metáfora guia deste artigo), a ideia de América Latina revela suas contradições sempre que se tenta definir a região em poucas palavras.
Edmundo O'Gorman e Enrique Dussel já nos mostraram como a América foi construída para reafirmar a centralidade europeia. Mais recentemente, Arturo Escobar e Walter Mignolo nos mostraram a forca colonizadora destes conceitos. Mas não se deve abandonar a ideia de América Latina uma vez que, depois de quase dois séculos, essa ideia tem tração suficiente para definir uma região na multiplicidade de suas camadas constitutivas: língua, economia, religião, sociedade e urbanidade.
Parte-se, então, da ideia de que a América Latina implica uma série de práticas de desenho e de construção do meio ambiente que não são, de forma alguma, hegemônicas mas que ajuda a trançar intelectualmente o que foi o projeto modernizador e suas manifestações arquitetônicas.

O DIAGRAMA
Como bons arquitetos que somos, não basta escrever a história, é preciso desenhar a história. O desenho, este nosso instrumento de trabalho fundamental, é o que nos permite operar as múltiplas dimensões do espaço ao mesmo tempo.
Reduzindo múltiplas dimensões a duas, no caso do papel, ou três, no caso do computador, conseguimos mapear o espaço construído ou a ser construído de forma a revelar relações, propriedades, características invisíveis se não pelo processo de desenho. Ao longo dos cinco anos de intenso trabalho no projeto do livro Modern architecture in Latin America: art, technology and utopia, foram produzidas dezenas de desenhos e diagramas. Em um dos primeiros croquis, em março de 2010, uma série de linhas se entrelaçavam ao longo do século 20, sobrepostas a um mapa da América invertida, como no famoso desenho de Joaquin Torres Garcia. Qualquer semelhança com a metáfora que abre este artigo não deve ser mera coincidência. Este desenho acompanhou toda a proposta, o rascunho dos capítulos, as múltiplas edições de cada texto, as revisões e até mesmo o processo exaustivo de pedir permissão para reproduzir cada uma das 300 ilustrações. Ao final, com o livro pronto, este desenho ficou de fora da edição impressa mas nunca fora da mente dos autores.
Em 2014, com o livro prestes a ser publicado, a Escola de Arquitetura da Universidade do Texas propôs montar uma exposição celebrando a publicação do livro. Neste momento, o croquis inicial volta à mesa de trabalho e se torna o objeto principal da exposição, ajudando a visualizar a complexidade de toda esta produção em suas condições históricas, sociais e políticas; e nas suas mais diversas escalas - das pequenas casas aos planos urbanos.
Em resumo, a linha do tempo sugere a construção de várias e múltiplas narrativas, um trançado de ramas que sugere menos um tronco e mais uma treliça que ajude a navegar a floresta de experiências e manifestações modernas.
Para efeito de orientação da leitura desta floresta de realizações modernas, os edifícios estão organizados por latitudes segundo a América invertida de Torres Garcia, o Chile mais acima e o México no pé da página. Tingidos nas cores dos três grandes temas, amarelo para arte, marrom para tecnologia e azul para utopia, os edifícios se conectam também por alguns blobs que os aproximam: urbanismo, surrealismo, experimentação, brutalismo e habitação, por exemplo. Importante dizer que este mapa, como em toda viagem, é um ponto de partida.
Batizada de "o outro do outro" por ter sido a arquitetura da América Latina sempre uma alteridade usada para justificar e reafirmar a centralidade da arquitetura do Atlântico Norte (o outro); e por conta da coincidência da exposição do MoMA (Latin american in construction, 1955/85), a linha do tempo aqui publicada organiza pela primeira vez, em um único campo visual, a totalidade do século 20. A totalidade do século, não a totalidade da arquitetura na América Latina, claro.
Reduzir um século de um continente a 200 pontos é um ato arriscado, mas necessário, como todo bom mapa. Como nos lembra Jorge Luis Borges, um mapa na escala 1:1 é inútil, a ideia de mapa só funciona com dramáticas reduções de escala. De novo, qualquer semelhança com o ato de projetar não é mera coincidência: o que são nossos desenhos senão reduções de uma realidade que se quer dominar?
Desta forma, em um diagrama sobrepõem-se múltiplas e paralelas vertentes históricas, bem como suas interconexões e sobreposições. Visualizam-se as pluralidades existentes e se percebe que a história aqui apresentada é provisória e interminável.

FERNANDO LUIZ LARA é arquiteto e professor da University of Texas at Austin onde dirige o Centro de Estudos Brasileiros daquela universidade. É autor, ao lado de Luis Carranza, do livro Arquitetura moderna da América Latina: arte, tecnologia e utopia, editado pela Universidade do Texas

Depois de Austin a exposição Arquitetura moderna na América Latina segue para Fortaleza (no Fórum Jovens Arquitetos da América Latina, em maio), para Madri (no Etsam, no início de junho), Milão (Politécnico de Milano/Piacenza em meados de junho) e Rio de Janeiro (Studio-X em parceria com Proarq-UFRJ no início de agosto) e depois para Monterrey, México, Cambridge, Reino Unido, Saint Louis e Fort Lauderdale, nos Estados Unidos, confirmados para o segundo semestre de 2015.
Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/254/artigo346251-2.aspx

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