Joaquim Guedes: Depoimento




Procurei saber o que queria dizer a palavra "depoimento", e a versão do dicionário é muito estranha: "é um testemunho num processo judiciário". É bem estranha a nossa situação.
Sinto-me pouco à vontade para participar de um julgamento da arquitetura brasileira, destes últimos 15 ou 20 anos. Trago de minha experiência vivida dentro dela algumas impressões, algumas ideias que, mesmo que não abranjam muita coisa, talvez possam servir de base para o nosso diálogo.
Eu queria que estas minhas posições fossem se esclarecendo enquanto desenvolvo três ou quatro temas. O primeiro, uma tentativa de pensar sobre a atual situação brasileira, o destino da cidade no Brasil, as bases deste processo e em que medida isto se rebate sobre a nossa condição profissional e que responsabilidades daí decorrem para nós.
É um assunto que me tem preocupado muito e, até mesmo no Rio de Janeiro, já o abordei várias vezes, achando que é possível revê-lo segundo um enfoque cada vez mais otimista. Esta situação, política, portanto, nos coloca diante de algumas opções, tanto em relação ao Brasil como ao conjunto latino-americano. Farei, em seguida, algumas observações sobre nós, como classe, e o IAB, diante de algumas responsabilidades que considero urgentes.
Em terceiro lugar, gostaria de dizer alguma coisa sobre nossa experiência mais recente ligada à formação do arquiteto. Porque, se pensamos na arquitetura de amanhã, e preciso pensar ao mesmo tempo no que há com a formação do arquiteto e sobre quais variáveis desta formação seria possível agir.
E em quarto lugar, se houver tempo (e se eu conseguir, de fato, resumir estas três partes precedentes) quero dizer alguma coisa sobre o que vi nesses 16 anos como profissional ou, particularmente, o que teria sido o meu caminho, a minha passagem.
Situação da Arquitetura Brasileira
Gostaria inicialmente de dizer que a arquitetura e a cidade são um produto econômico e social e, portanto, em ultima análise, uma opção politica. (Desculpem que haja algumas ideias quase óbvias, mas preciso fazer algumas afirmações a fim de que este conjunto de ideias tenha um mínimo de clareza, começo e fim).
Perguntamos, então, qual é a política que convêm ao nosso país, na produção da sua cidade, e qual é a politica vigente, hoje.
Pensos que a situação atual no Brasil se apresenta de forma aparentemente contraditória. De um lado, existe um governo, com características de governo forte, sujeito a pressão de grupos internos e externos com alto poder de controle da economia nacional; de outro lado, praticamente 2/3 da população total à margem do mercado, em condições miseráveis. Incorporá-la entretanto ao processo econômico não é mais apenas um objetivo social e moral, uma simples questão de consciência individual ou coletiva. Acredito que os brasileiros lúcidos sabem hoje, que a desmarginalização e assimilação à vida nacional dessa imensa população excluída constitui valorização e aproveitamento de um fato indispensável e insubstituível para qualquer projeto de desenvolvimento econômico.
Esta relação de dependência entre o sistema e a marginalidade nacional faz com que concretamente todos os projetos políticos possíveis, doravante, estejam condenados, por mais reacionários e truculentos que sejam, ao fracasso ou à abertura. Ou se defendem do germe que representa a integração progressiva rápida do conjunto da população brasileira, incluindo a sua participação política, e então carecerão de mercado crítico e recursos e falecem, ou incorporam o conjunto da população como projeto, desenvolvendo uma massa de recursos que os alimentará e transformará posteriormente um novo projeto social.
Todas as opções que se colocam para os nossos governantes se resumem hoje a duas: querer e poder ou não querer ou não poder assimilar a população, que eu chamei de marginal. Qualquer escolha, porém, (é este o aspecto otimista a que me referi) terá como resultado final uma sociedade nova, aberta, sem desigualdades odiosas, rica e produtiva, dotada de uma capacidade criadora que sequer podemos, hoje, imaginar.
A escolha entre os caminhos terá apenas significados episódicos. Poderá aumentar ou não os custos materiais e humanos e tempo do trajeto histórico. A abertura será tentada, mesmo a contragosto, por instinto de conservação do sistema.
Este processo econômico, na verdade político, repercute sobre todos os setores da vida nacional e portanto, a cultura, a arquitetura e a cidade.
Os exemplos mais esclarecedores do que acabo de afirmar estão manifestos, no setor urbano, com a criação do Banco Nacional de Habitação, em 1964; da Comissão Nacional de Política Urbana e Áreas Metropolitanas, em 1973; e da Empresa Brasileira de Transportes Urbanos em fase de organização.
A integração de camadas cada vez maiores da população, entre consumidores de bens urbanos, individual e coletivamente, e da cidade como um todo, tornou-se urgente. Paira a ameaça da asfixia do mercado interno, colapso da economia e da perturbação da ordem social e suas temidas consequências. É por isso que o BNH, a CNPU e a EBTU constituem adventos importantes na modernização e aceleração do processo brasileiro como veículos de transferência de recursos culturais e urbanos dinâmicos, e de profundas repercussões políticas e sociais.
Temos dado uma atenção particular à participação do arquiteto como homem capaz de incluir variáveis estética e humanas no grande projeto nacional que seria o BNH/cidade. Esse tem sido um equívoco. Nossa atuação somente subsiste de forma consistente se assumirmos conscientemente este processo por dentro e de dentro, na sua precariedade de recursos convencionais, a partir do nível cultural, tecnológico e humano em que se encontra e participando da saga da construção da cidade, não para o povo, mas com ele. E é esta a diferença sutil que confere, ao que afirmo, uma significação objetiva, isenta —penso— de qualquer demagogia. Velhos conceitos e preconceitos não se ajustam ao projeto. Não temos nada a "incluir". Precisamos renascer.
Fazer cidades, hoje, significa assumir a nossa parte no desenho dos novos conteúdos da sociedade urbana, de suas soluções internas, das atividades que definirá para si mesma, compreendendo a partilha de recursos que destinará à consecução de seus objetivos, na definição das estruturas físicas necessárias, no dimensionamento e localização de seus locais de viver.
Assim, somos partícipes —há muito tempo— da construção da cidade nova, real e concreta, e por isso, brasileira. Brasileira não por idealismo "chauvinista", ou persistências formais, mas por necessidade e realismo. Nossa missão é a de assumir o caráter coletivo e politico da criação de uma nova estética que não poderá fundir-se em velhos conteúdos de refinamento tecnológico e formal. Ela deverá estar apoiada —com sensibilidade e rigor— na vida, atividades e movimentos das massas urbanas, nas revelações de seus pequenos interesses e acontecimentos cotidianos; pois os grandes interesses, provavelmente, se farão ouvir com força.
A "beleza" não será clássica e serena, não será o objetivo, mas sim o resultado do fazer lúcido, necessário e rigoroso —medida técnica, eficiente e perfeita.
Penso que este debate sobre a "beleza", como objetivo, pode ser melhor entendido na seguinte medida: todo ato humano em si mesmo pretende ser perfeito.Quando conversamos com um amigo, queremos que ele nos entenda e nos esforçamos por consegui-lo dizendo as coisas da melhor maneira possível, da mais adequada, da mais contundente, da mais agradável. E esta intenção primordial de fazer o melhor que leva inevitavelmente à beleza em qualquer cometimento feito com seriedade.
É por esta razão que penso que ela não vem antes, mas é uma consequência. Vem por acréscimo, a partir de um processo feito com lucidez e seriedade. Nunca entendo uma arquitetura que nasça de urna intenção abstrata e obsessiva de procura da beleza.
E o que é a beleza? Quem, em sã consciência, pode considerar-se depositário de quantidade apreciável deste bem e capaz de, prodigamente, distribuí-lo à humanidade?
Como fica insólita esta ideia, se considerarmos que a humanidade, os homens a quem queremos dar a beleza... são uma massa imensa de sofredores em renda (na própria linguagem do governo), que vivem reprimidos e economicamente marginalizados, embora o pais tenha imensos potenciais?
Para mim, toda arquitetura que parte do desenho é reacionária, ou, como diria Walter Benjamim, "o esteticismo é um componente do fascismo", porque ele é exterior ao processo de fazer e se impõe.
Só o homem deve estar em nossas cabeças no momento do projeto: pensado, vivo, particular, com humor e esperança. Somente assim as cidades serão belas. Mas, belas como? Que beleza? O que é a beleza, mais uma vez? A beleza delas será certamente chocante, para os que preconcebiam modelos ideais, mas absolutamente nova, fresca, autêntica e real.
Dentro dos próximos 20 anos, tomaremos parte na construção de cidades para 170 milhões de habitantes urbanos brasileiros. Esta obra gigantesca se fará e não será adiada. Será produto da sociedade brasileira.
Seremos os seus arquitetos, da sua organização física e espacial, da construção dos seus edifícios e dos locais urbanos, instrumentos sociais, na arquitetura de uma nova paisagem humana. Projetar é pensar à frente, é antecipar o que ainda não é. Neste sentido, todo projeto é utópico.
A utopia, não a penso como um ideal improvável.  É condição absoluta do realismo. Seremos necessariamente utópicos e realistas, ou reacionários. E defenderemos nossas propostas com força, porque elas não serão exclusiva e objetivamente nossas, mas da sociedade como conjunto e representarão suas forças dinâmicas e renovadoras. Convém relembrar que já não existem obstáculos impossíveis às utopias. Dominamos todas as técnicas indispensáveis à criação do ambiente humano necessário, do território à matéria, à velocidade e às ideias.
O surgimento de uma nova sociedade urbana brasileira é a-histórico, ou melhor, é como se com ele a história começasse de novo. Uma grandiosa estrutura de agregados humanos, de natureza nova, regrada por leis internas, até hoje desconhecidas. Sucumbirão os óbices objetivos e subjetivos que a impossibilitavam até aqui e ela surgirá assim, por necessidade. A "utopia acabou". Marcuse diria também que prevalecem, é verdade, conflitos internos. Determinados segmentos sociais se oporão ao seu projeto. Porém, estas forças serão levadas a incorporar as grandes massas marginalizadas aos seus programas particulares de expansão porque precisarão delas como mercado. Ao pensarem estar confirmando sua hegemonia, estarão dando inicio à sua própria capitulação e ao desenvolvimento e liberação do novo conjunto de forças que definirá, enfim, as características sócio-urbanas do projeto futuro. E vaidade pessoal e profissional aí é besteira. Seremos importantes... se formos parte; seremos sábios, às vezes líderes ou vanguarda... se formos capazes e permanecendo parte, dentro.
Acredito que arquitetura erudita brasileira apresenta-se um pouco fechada e pretensiosa para tomar parte nisto que eu chamaria de banquete.
Penso que dentro dela alguns se comportam como se fossem senhores de um grande feudo. Temos a impressão de que dizem, em geral através de seus porta-vozes menos autorizados, que "a gloriosa arquitetura brasileira é esta, como a cunhamos, e só esta. Foi feita por nós e está feita. Quem não estiver com ela, estará contra ela —e não o aceitamos".
Mas, que sentido tem isso, diante da vibração e da mobilidade do processo histórico? Que sentido tem isso, diante do exemplo dos maiores arquitetos que nos precederam, que se caracterizaram pela invenção, pela extraordinária criatividade, por uma insubmissa compreensão e admiração do passado, e por uma modesta postura de trabalho árduo à procura de respostas, tantas vezes brilhantes, sempre novas e corajosas, para os problemas que a sociedade lhes apresentava?
Penso que é preciso dessacralizar o passado como limite e a partir dele estimular a abertura de novos caminhos, tendo em vista o presente e o futuro. Recordo-me neste instante de certas afirmações muito comuns entre nós do tipo "somos os autores da melhor arquitetura do mundo", uma arquitetura única, visão e caminhos definitivos que oferecemos generosamente à humanidade, que deles se poderá servir. Aliás, a palavra "generoso(a)" é muito usada pelos arquitetos...
Certa vez, ouvi um professor de nossa faculdade em São Paulo proclamar com todas as letras estas ideias, diante de um ilustre arquiteto e professor argentino que nos visitava. De pé, no bar da escola, dizia ele: "E... aqueles edifícios do Testa e do Solsona são interessantes. Mas falta alguma coisa... Não sei se vocês conhecem o Banco de Londres, em Buenos Aires, e os maravilhosos edifícios do Solsona. "Falta alguma coisa..."
"Alguma coisa... como assim?"
"Aquela leveza e aquela grandeza que tem a arquitetura brasileira... fulano de tal, arquiteto brasileiro, naquele determinado projeto, por exemplo, no seu desenho para tal lugar, fez uma proposta que é uma indicação de caminhos par a sociedade mundial do futuro". A conversa foi mais longe...
Nós dois ficamos um pouco desconcertados —o argentino e eu enquanto o outro colega dissertava ungido com a maior convicção. Há pessoas que pensam, de fato, assim. Trata-se de um comportamento relativamente generalizado entre nós que, além de triste em si mesmo, tem consequências nefastas, porque embrutece, cega e deforma. Faz muito mal só a nós, mas sobretudo aos jovens, que são, de certa forma, asfixiados por uma espécie de sacralização do passado, de mitificação dos heróis, muito além dos limites suportáveis, sobretudo para os que não tiveram a felicidade de nascer brasileiros...
Além disso todos os países possuem os seus grandes arquitetos, ou seja, os arquitetos de que necessitam. Muitas vezes nos surpreendemos quando alguém que nos visita não se extasia diante das obras que lhes mostramos aqui. Mas é assim. Elas valem muito para nós, numa determinada situação e cultura, mas não têm o mesmo significado para outras pessoas, que não vivem esta situação e esta cultura. Este ufanismo antigo e bobo nos tem impedido de compreender algumas contribuições maravilhosas de irmãos de fora, África, Ásia e América Latina...
Acho que, na oportunidade do próximo Congresso Internacional de Arquitetos, a ser realizado no México, deveríamos preparar uma grande reunião latino-americana, pensando os problemas continentais e os nossos destinos comuns, e criando, de fato, um primeiro congresso da UIA, não europeu.
Para isto, será necessário que não nos julguemos melhores do que somos, ou melhores do que os outros. Precisamos por fim a atitudes insensíveis tão ao gosto presente, que, às vezes, tanto ofendem aos nossos vizinhos. Esta confraternização parece oportuna e enriquecedora, e talvez devesse ser ampliada para uma reunião ibero-latino-americana, como base para reflexão dos nossos problemas comuns. Ao IAB caberia a liderança desse movimento. Não lhe faltam, para tanto, experiência e recursos humanos.
Entretanto, é preciso aclarar a nossa Independência em relação às instituições vigentes. Pode-se constatar facilmente que vem ocorrendo um estreitamento de contatos entre o IAB e o poder, no Brasil. Isto, evidentemente, por um lado, é uma qualidade. Porém, constrange verificar a promiscuidade que, em determinados casos, se observa entre certos departamentos nossos e órgãos da administração local.
A subida de um colega, merecedor do nosso respeito para um cargo importante da administração pública, não deve motivar aderências e compromissos e, o que é pior, sob pretexto de ampliar mercado de trabalho para os jovens (o que nem sempre é verdade), conseguir vantagens para o departamento ou a diretoria. Em minha opinião, é justamente quando um colega assume responsabilidade maior que o divisor de águas entre governo e arquitetos deve ser mais nítido. Primeiro, porque contamos de início, com uma facilidade de acesso e uma afinidade prática indiscutíveis. Em segundo lugar, porque somente assim poderemos, por meio de uma atitude crítica e isenta, contribuir com alguma vigilante atuação.
Os colegas com altos cargos na administração pública deveriam também, a meu ver, ficar totalmente afastados dos cargos de direção do órgão de classe, como também deveriam ser considerados incompatíveis para nos representar em qualquer organismo que tivesse função pública afim.
Insisto que esta independência deveria ser completa. Devem ser preservadas as condições para que a opinião do IAB não seja pressionada por nenhum poder. Precisamos manter independência total inclusive para que nossas relações profissionais internacionais não sejam dificultadas pelas relações internacionais do nosso pais.
Concluindo, um movimento profissional de amplitude latino-americana, me parece necessário. Somente assim a América Latina assumiria, em nossas consciências, os seus reais contornos continentais, fundamentais para compreender o nosso próprio país.
Formação Profissional
Isto posto, gostaria de dizer alguma coisa a respeito da formação profissional. Acho que ela está exigindo revisões urgentes.
Sob o pretexto de ministrar cursos abrangentes, vêm sendo repartidos os pequenos recursos disponíveis para a formação, não de um arquiteto mais ágil e com um leque de respostas mais amplas, mas de um profissional dividido em 4 ou 6 linhas distintas, com fortes conotações especializantes e incomunicáveis, que são: o projeto do edifício, o planejamento urbano, o desenho industrial, a programação visual, tecnologia e história. Em lugar de fazer um arquiteto mais habilitado nesses campos todos, o que me parece impossível, creio que se está tendendo a formar subprofissionais absolutamente fechados nessas áreas.
Os cursos de graduação se transformam, pouco a pouco, num conjunto superficial e indefensável de introduções às ciências alheias que congestionam o aluno e o impedem de se dedicar a ocupações por ventura mais pertinentes nesta fase, além de constituírem um autêntico desrespeito às outras áreas de conhecimento. Quando estas disciplinas forem necessárias, devem ser bem dadas, com um grau preciso de aprofundamento. Assim, por exemplo, uma teoria das estruturas, uma teoria do setor básico urbano, a iluminação natural, a sociologia, a economia, a climatologia urbana.
Os cursos de pós-graduação deveriam procurar objetos próprios de investigação e pesquisa e fugir a títulos feitos e disciplinas acadêmicas, notadamente as das áreas mais pródigas, como a sociologia, a economia e a história. Toda a ênfase deveria ser dada às reflexões possíveis, a partir da observação dos atributos físico-espaciais do processo urbano. Nossos cursos de pós-graduação devem ser marcados por uma visão arquitetônica desse processo, convivido, mas nunca confundido multidisciplinarmente, de tal forma que mesmo os estudos homônimos de história da arquitetura e da arte e história da cidade não se confundam com os que poderiam ser dados no Instituto Geral de História.
Participei da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, durante os dois últimos anos, desenvolvendo uma proposta de reestruturação do curso existente. Esta proposta foi elaborada por um conjunto de 5 professores, pertencentes a diversas áreas e departamentos (é preciso que também se diga que, quando se caracterizou esta partilha de campos, em nossas escolas, cada um deles passou a reivindicar espaços próprios maiores, sempre em detrimento de uma compreensão global do arquiteto ou do professor arquiteto).
Recebi dias atrás o currículo de escolas francesas, que estão passando, hoje, por uma grande renovação. Acredito que dentro de 10 ou 15 anos a França venha a dar frutos realmente notáveis, porque o esforço que está fazendo, no sentido de rever seu processo de formação, depois de anos de escuridão nas Écoles de Beaux Arts, é simplesmente inédito e comovente. Os títulos das disciplinas são insólitos. Por exemplo: "Seminário sobre as relações entre a prática gráfica e o canteiro de obras". É uma disciplina! Outra: "Utilização de energia doce no desenvolvimento urbano".
Assim, cria-se títulos para coisas que são concretamente problemas e reúnem-se alunos, professores e docentes que se inovam no interesse de examinar essas questões, criando novas disciplinas exigidas pela prática social.
E a lógica é uma das coisas escassas em nosso meio. É comum conversarmos com um arquiteto, ouvi-lo explicar uma série de ideias e concluir pelo inesperado, pelo oposto do que se esperava, em relação ao que vinha dizendo. Quer dizer, os nexos entre uma frase e a seguinte são ralas, muito tênues e prevalecem a intuição, a sensibilidade e o "chute". Com raras exceções, os escritos dos arquitetos são de difícil compreensão e, não raro, um tanto absurdos.
Obra
Acho difícil falar sobre o meu trabalho. Mas entendo que um depoimento poderia não ser completo se não falasse de alguma coisa assim. Acho que desenvolvi duas características obsessivas, desde que me formei, ambas ligadas ao que existe de artesanal no meu trabalho. Devo esclarecer que considero todo trabalho de pensar, como profundamente artesanal.
Uma delas seria um esforço continuo de rigor científico e uma preocupação construtiva sempre à frente, presente. A segunda viria de que, para mim, a arquitetura e a cidade, o planejamento e o projeto sempre foram artes eminentemente, essencialmente e concretamente antropocêntricas. Todo o meu trabalho penso que partiu daí. Na minha formação, como na de quase todos os arquitetos de minha idade, a leitura intensa de obras de Le Corbusier teve um peso muito especial. A ponto de conhecermos de cor quase todos os seus projetos, numa certa fase. Um pouco mais tarde, foi a paixão pela obra de Aalto e de Wright.
No plano interno, um respeito muito grande e o uso quase diário das lições de alguns mestres. Queria nomear, em especial o Rino Levi, alguns mestres cariocas, entre os quais o ilustre amigo Jorge Moreira, o Oscar e o Reidy.
Conheci também dois profissionais que influenciaram muito meu trabalho e minha formação. O primeiro foi o Padre Lebret, que acompanhei na fundação do talvez primeiro escritório de planejamento territorial do Brasil, a SAGMACS — (Sociedade de análises gráficas e mecanográficas aplicadas aos complexos sociais) e com quem tive a honra de trabalhar quando ainda estava no segundo ano de faculdade. Convivi com ele basicamente no período da escola e apenas um ano depois de formado. Nesta ocasião, nos separamos por razões diversas e algumas incompreensões de minha parte e só vim reencontrá-lo às vésperas do início do extraordinário estudo sobre São Paulo, em 1957. Depois, nunca mais o vi a não ser em encontros rapidíssimos. Hoje, cada vez que volto a ler os seus trabalhos, inclusive os que participei, como principiante, meu respeito aumenta.
Recentemente, lendo os estudos sobre São Paulo, dei-me conta de que talvez sejam mais importante seus estudos de 1957 —com recursos exíguos, mas com um sensibilidade absolutamente incomum— do que PUB, o PMDI e outros, que foram feitos com 4 grandes escritórios internacionais e aquela evasão de dólares que a gente já conhece.
O segundo profissional foi o Carlos Milan. Fomos sócios durante 5 anos. Quando nos encontramos, o Milan já tinha uma grande experiência de construtor. Foi através dele que conheci o Rino. Encontrei neles apoio para esta minha obsessão de rigor científico-construtivo.
Quanto à minha obra, é muito pequena, e, realmente, não sei o que vale. Mas, dentro dela, tomei parte em experiências importantes.
Tenho multo orgulho —certamente injustificado, mas tenho!— por exemplo, de algumas descobertas do plano piloto para Brasília, em 1956-1957, e de algumas afirmações que fizemos que hoje assumem um caráter de antecipação e foram numa certa medida, pioneiras. Primeiro, em pleno concurso, que impunha uma cidade limitada e especializada, a descoberta e a afirmação de que deveria ser aberta e que não se poderia desenhar uma cidade limitada.
Naquele tempo, vivíamos a plena vigência das teorias inglesas das cidades limitadas. Então, de repente, ter farejado, ter pressentido, que isso era um absurdo teórico nos levou a ter medo de dizê-lo. Parecia uma loucura. E hoje, o próprio ministro Rangel Reis mostra Brasília explodida, já se aproximando da população que prevíamos com muito medo para o ano 2.000 e que deve acontecer 15 ou 20 anos antes do que ousávamos pensar —e se referindo a Ceilândia como "a maior favela oficial do Brasil". Se não é uma coisa que nos encha de alegria, de qualquer maneira confirma que estávamos numa linha correta de investigações e compreensão do processo urbano.
A segunda descoberta deste trabalho para Brasília foi: se a cidade deveria crescer, deveria ter uma estrutura para crescer, fundada numa tecnologia  adequada, que maximasse as oportunidades da aglomeração. No caso propúnhamos o metrô. E por esta descoberta e pela anterior, fomos —basicamente— desclassificados.
Dos jornais da época consta que o representante do IAB no júri, Paulo Antunes Ribeiro, ao tentar propor para a discussão dois trabalhos, entre os quais o nosso, dentro da Comissão de Julgamento que já teria selecionado 10, não conseguiu; este seria o motivo que o teria levado a retirar-se do júri.
A terceira descoberta foi a ideia de que a cidade assim concebida deveria ser organizada em sistemas de espaços referidos aos grandes grupos etários, em função dos seus raios de ação e percepção diferentes. Abriram-se espaços cada vez mais amplos, dos mais jovens aos mais velhos, reservando-se a cidade plena, aos adultos. Ideia, como veem, oposta ao conceito de unidade de vizinhança, um quase dogma.
A mesma preocupação com os movimentos humanos e o transporte coletivo marcou o nosso trabalho no Plano Urbanístico Básico de São Paulo em 1968. Não conheço plano que não seja de engenheiro viário, como era o Prestes Maia, por exemplo, que tivesse defendido um projeto de estrutura urbana baseado sobre uma estrutura de transporte rápido de massa.
É preciso saber que, nessa época, havia uma verdadeira euforia na indústria automobilística e tudo se fazia por ela. Então, investigar o problema das aglomerações a partir de seus fundamentos teóricos e afirmar que seria uma loucura e uma impossibilidade de resolvê-lo com base no transporte particular e no automóvel... era um trabalho abstrato e uma luta contra tudo.
Não obstante, o PUB confirmou esta convicção e a proposta final apresentada era uma proposta estruturada sobre o sistema de metrô, de quase 400 quilômetros de extensão. Acho que isto tem algum interesse, na medida em que estávamos em 1968, muito longe da crise do automóvel. Hoje, até o governo já fala em "operação bicicleta", em metrô e em transporte de massa.
Em São Paulo, estamos notando hoje uma certa tendência, por parte do governo, de dispersar os equipamentos urbanos por toda a cidade, no sentido de eliminar a distância casa-equipamento-casa-trabalho. Penso que este é um dos problemas que o IAB teria que enfrentar com o máximo de independência nos próximos meses. Esta definição parece estranha, senão totalmente absurda. Constitui uma compartimentação anticidade. Uma verdadeira capitulação.
Tentando concluir rapidamente esta informação sobre o meu trabalho de arquiteto, creio que algumas vezes tive o gosto de encontrar caminhos talvez pioneiros para alguns problemas. Um deles se liga ao uso do concreto. Acho que havia pouquíssimos projetos, no Brasil, em 1953 (quando fiz a minha primeira obra), em concreto aparente. Não conheci outro... talvez este museu que eu, de resto, não conhecia.
Participei de um concurso para uma igreja como funcionário de um escritório de engenharia, onde trabalhava. Isto não se faz, vocês sabem. Ganhei o concurso e com uma estrutura de concreto aparente. Dizendo assim, não tem tanta importância, mas a verdade é que isto me obrigou a aprender a pensar estrutura de um jeito novo, porque até ali tudo era incluído e revestido. Foi para mim uma experiência desafiante. O projeto é de 1953, e, em São Paulo, pelo menos que eu saiba, foi a primeira experiência. Creio também que o primeiro edifício residencial com estrutura de concreto aparente foi a residência Cunha Lima, em São Paulo, de 1957.
igreja de Vila Madalena deve ser contemporânea da publicação da primeira obra inglesa, que fazia um uso semelhante de concreto, que foi a reforma do Teatro Old Vick, em Londres. As experiências de Stirling são posteriores. O que me levou a ficar preso ao concreto e a tentar explorar as suas possibilidades e o seu mundo foi uma frase de Le Corbusier que dizia
Unidade de Marselha: manifestação estética de um robusto, são e leal emprego do concreto armado. O material se colore com o tempo, reconstituindo o aspecto das massas rochosas das montanhas circundantes que lhe forneceram o aporte essencial do aglomerado”.
Eu era estudante, então, em 1951, fiquei fascinado com esta ideia de poder reconstituir a pedra que eu quisesse, com a forma que eu quisesse, com possibilidades espaciais absolutamente revolucionárias e mantendo as características de fatura do material, como se podia manter a fatura de uma cantaria de pedra ou de uma coisa qualquer. Um material com este poder, a arquitetura brasileira não conhecia até então. O concreto era sempre revestido, de uma maneira ou de outra. Não era concreto caracteristicamente vivido desta forma. Não era exibido como material, como pedra feita.
Na faculdade de arquitetura de São Paulo, há atualmente uma exposição do Milan, do Rino Levi e do Jaques Pilon. Fiquei surpreso de encontrar o meu nome lá, ligado ao do Milan, do Paulo Mendes da Rocha etc., como jovens arquitetos que começaram a fazer uma arquitetura neobrutalista paulista, a partir de experiências do professor Artigas —isto não é verdade. O Artigas veio fazê-lo muito tempo depois; e as primeiras obras do Milan foram de 1961, depois da nossa separação.
Uma outra situação construtiva que me apaixonou foi o problema do vidro e sua relação com o concreto. Em 1961, tomando um tema de Le Corbusier, que classificava os vidros externos em áreas de iluminação, áreas de ventilação e áreas de passagem; e a partir de uma série de reflexões que o Milan e eu vínhamos fazendo, no sentido de encontrar uma arquitetura brasileira direta e barata, não tanto por razões de economia de tostões mas economia de processos, comecei a fazer alguns estudos que partiram da análise do que Le Corbusier teria feito no Convento de La Tourette. A partir daí fiz uma série de obras.
Inicialmente, comecei a aplicar o vidro colado ao concreto. Tive os maiores problema, porque as nossas colas, que se diziam suficientes, na verdade se polimerizavam atrás dos vidros e eles caíam. Era obrigado então a fazer presilhas de alumínio para aproveitar os mesmos vidros e não perder todo o dinheiro gasto.
Mas pouco a pouco consegui desenvolver uma série de técnicas que permitiram, por volta de 1965, colocar o vidro diretamente no concreto, através de juntas especiais de dilatação, e estes planos de vidros adquiriram uma mobilidade absolutamente incrível, porque, enquanto toda a técnica de caixilharia dificulta os não retos, quando não temos este elemento intermediário entre vidro e vidro, a liberdade é total, além de que as arestas de vidro com vidro são fascinantes. Isto me permitiu um trabalho mais livre, de concreto e de vidro, um com o outro, numa tentativa de, dominando a técnica, criar diálogos novos que me encantaram.
Ultimamente tenho tratado com grande interesse de alguns problemas de arquitetura popular. Há o projeto de um conjunto de apartamentos para a COHAB, em Campinas, com 700 apartamentos (contratados em circunstâncias tão aviltantes quanto inevitáveis). Nosso grupo desenvolveu um trabalho de análise muito cuidadoso, pondo de lado nossa formação estética e todos os nossos hábitos de construção, procurando rever o problema, nas suas bases, pois se trata de arquitetura cujas condições, recursos e destino conhecemos pouco e de que não tínhamos experiência. Este trabalho resulta num desenho que diverge muito do que fazíamos e do que normalmente é considerado "belo".
De resto, a nossa experiência com COHABs é triste. Houve um projeto que fizemos em 1965, dentro de uma disciplina que nos parece absolutamente correta e que, ao ser construído, foi totalmente completado por enfeites de concreto aparente nos umbrais das portas e nas janelas, porque "tinha que ter alguma coisa a mais". O esforço, no sentido de pensar uma nova função das novas situações sociais foi realmente traído no processo de fazer.

ReferênciaArquitetura Brasileira após Brasília / Depoimentos, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro, Comissão de Estudos de Arquitetura, Edição do IAB RJ, 1978.
Transcrição e Revisão: Igor Fracalossi

Fonte:Igor Fracalossi. "Joaquim Guedes: Depoimento" 29 May 2015. ArchDaily Brasil. Acessado 29 Mai 2015.  







    


 

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