Para ler arquitetura e democracia no Brasil: os arquitetos e o debate interrompido com o golpe de 1964

Por Ana Paula Koury
Edição 241 - Abril/2014



Os arquitetos e o debate interrompido com o golpe de 1964
Para uma geração de brasileiros nascidos após 1985, a democracia é uma espécie de natureza política. Entretanto, nem sempre foi assim. A democracia foi a grande construção sonhada por uma geração que viveu sob a tirania do estado militar entre 1964 e 1985. O canteiro de obras da redemocratização reuniu os arquitetos nos anos de 1980 que avaliaram criticamente os resultados autoritários em que havia desembocado o projeto moderno no Brasil. Foi nestas circunstâncias que produziram um novo ideário para a arquitetura contemporânea brasileira. A função social da arquitetura seria de agora em diante ancorada na democracia de base local e na ampliação da participação política pela organização dos movimentos sociais urbanos.




Conjunto do BNH Vila Boqueirão, em São Caetano do Sul, SP, executado em 1970. Com 452 unidades, associação de moradores e playground. Projetado pelos arquitetos José Fleury e Sandoval Marcondes, o conjunto atendia à população com renda familiar média entre 13 e 22 salários mínimos. As unidades foram construídas em sistemas tradicionais como alvenarias de blocos de concreto e acabamentos de boa qualidade, como esquadrias de cedro e ferro, revestimentos de cerâmica nas áreas molháveis e nas demais áreas com piso de taco de peroba. A maioria das unidades possui dois dormitórios e a área varia entre 45 m² e 60 m²
Qualquer pessoa que procure compreender o que se passou entre os arquitetos nos anos de chumbo da ditadura e que passe algumas horas no arquivo do Estado consultando os dossiês dos profissionais identificados com "o pensamento de esquerda" no Brasil pode, sem muito esforço, compreender como é indiscutivelmente importante e igualmente controverso rememorar este período da vida política brasileira.
Este artigo pretende reconstruir o debate interrompido com a ditadura de 1964. Debate que foi, mais do que as posições em jogo, o grande valor daqueles anos.

O CENÁRIO HISTÓRICO-POLÍTICO E A CRIAÇÃO DO BNH
A movimentação dos golpistas iniciou-se em 31 de março, partiu da sede do Primeiro Exército em Minas Gerais e, com a adesão da sede paulista, seguiu para o Rio de Janeiro onde enfrentaria as tropas fiéis ao presidente. Sem apoio suficiente para resistir, João Goulart deixou o palácio presidencial no Rio de Janeiro, seguiu para Brasília, depois para Porto Alegre refugiando-se finalmente no Uruguai.



Alojamento estudantil realizado por Oscar Niemeyer para a Universidade de Brasília em 1962. Foi construído apenas um protótipo. Com 32 m², foi concebido como uma espécie de contêiner a ser organizado em uma estrutura composta por cheios e vazios. A disposição criaria um sistema de varandas para cada uma das unidades, praticamente dobrando a área disponível por alojamento
Junto com o seu governo, desarticulou-se a mobilização popular pelas reformas de base, entre as quais a reforma agrária e urbana que causava grande apreensão entre as elites conservadoras por, entre outros motivos, estabelecer limites ao direito de propriedade.
Mas a ação militar que destituiu o presidente de seu mandato legal não deteve, de imediato, o debate sobre o desenvolvimento e a modernização que animava o período, como também não pôde reverter a escalada inflacionária e a inversão das taxas de crescimento que persistiam desde 1961.
Em agosto de 1964, foi criado pela lei nº 4.380 um importante instrumento de política habitacional e urbana: o Banco Nacional da Habitação e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo. A função do banco era responder ao intenso processo de urbanização brasileiro, principalmente oferecendo o financiamento da casa própria a amplos setores de classe média. Como resultado indireto, os financiamentos disponibilizados para o programa habitacional e para as obras de urbanização sustentaram uma política de empregos entre as classes mais baixas, absorvendo uma parte da população provinda da migração rural-urbana. E principalmente as atividades de construção impulsionariam uma parte do setor empresarial, movimentando o ciclo produtivo e o mecanismo de acumulação privado das elites brasileiras.
Deste modo, o principal agente da política habitacional e urbana do País criado no período seria também um importante instrumento do processo político que se instalara com o regime militar, arregimentando o apoio de diversos segmentos da sociedade civil.

HABITAÇÃO E REFORMA URBANA: OS DEBATES PRÉ-1964
O debate sobre habitação e reforma urbana vinha sendo travado de longa data entre profissionais liberais e órgãos especializados. O 1º Congresso de Habitação no Brasil é realizado em 1931 e outras iniciativas vieram com o objetivo de abordar o problema da moradia social, como as Jornadas de Habitação Econômica promovidas pelo Instituto de Organização Racional do Trabalho (Idort) na década seguinte.
Apenas em 1946 é que foi criado um órgão central destinado unicamente a formular e a implementar uma política habitacional enfrentando com programas diversificados os desafios da urbanização brasileira e do assentamento da força de trabalho. A Fundação da Casa Popular teve este objetivo e foi o resultado de um projeto técnico inovador que previa atuar simultaneamente no financiamento e na produção da unidade e também no processo de urbanização, porém esbarrou na capacidade política de concentrar os fundos sob seu domínio para alcançar suas metas. Teve, assim, uma produção efetiva pequena e muito aquém de sua capacidade de formular saídas para o problema de moradia no País.
Em 1963, quando houve o famoso encontro realizado no palácio de Quitandinha no Rio de Janeiro e depois na sede do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo já havia um debate amadurecido sobre os temas de habitação e reforma urbana entre os arquitetos. O encontro aglutinou a expertise nacional em um amplo debate que foi então realizado na onda dos movimentos pelas reformas de base durante o governo de João Goulart.
A proposta originada durante o encontro incluía a criação de um novo órgão de habitação e política urbana muito semelhante àquele que foi criado em 1964. Principalmente em suas linhas mestras de atuação: o financiamento da moradia, a articulação da política habitacional com a política urbana e com a organização da cadeia produtiva.
As diferenças da política habitacional difundida pelo BNH e as resoluções do Quitandinha em 1963 revelam o debate silenciado entre os arquitetos e o novo compromisso político que daria sentido às decisões técnicas, aos sistemas construtivos adotados em diferentes obras, e às formas da arquitetura em um novo arranjo de classes sociais no País.
O Banco estava ligado ao Ministério do Interior e, portanto, estreitava os vínculos entre a política habitacional e a de colonização. Ao estender seus investimentos para as periferias das cidades médias atendia ao mesmo tempo a necessidade de desconcentração do desenvolvimento urbano altamente polarizado do País mas também angariava o apoio político dos setores econômicos ligados aos poderes municipais, favorecidos com a expansão da mancha urbana.
Os grandes conjuntos habitacionais de baixa densidade, formados por unidades isoladas no lote que se difundiram no chamado "padrão BNH", embora tenham alcançado uma quantidade significativa de unidades financiadas (estima-se 4,5 milhões em todo o País) produziram, em um primeiro momento, um sistema de vida oneroso pela distância entre eles e a cidade consolidada. O que, em alguns casos, iria ser revertido com o crescimento posterior da cidade que o próprio investimento atrairia.
Outro dos objetivos do Ministério do Interior era ocupar, com a execução da política habitacional, uma parte do excedente populacional que havia ficado de fora do mercado de trabalho. Neste caso optando pelo sistema construtivo tradicional e descartando aparentemente a premissa do desenvolvimento tecnológico aplicado à produção da unidade habitacional - pressuposto do projeto moderno que havia sido ensaiado em escala inusitada nos setores residenciais em Brasília.






Protótipo de residência unifamiliar apresentado pela Construtora Alfredo Mathias no Canteiro Experimental de Narandiba na Bahia em 1978. A iniciativa foi do BNH com o objetivo de reunir propostas para a produção habitacional de vários setores, iniciativa privada, profissionais autônomos e das instituições de ensino
A política habitacional adotada pelo BNH era, portanto, o oposto das transformações técnicas que haviam se concentrado na produção da nova capital, levando a engenharia civil brasileira à dimensão de protagonista do processo modernizador e de onde saíram muitos experimentos de pré-fabricação e racionalização construtiva para produzir a casa e a cidade do Brasil urbano e moderno, e que deu origem a várias empresas de engenharia e construção.
Embora a política de fato implementada pelo BNH não tenha sido conservadora quanto ao padrão de desenvolvimento urbano e tecnológico, a sua criação logo após o golpe representou a possibilidade de organizar a expansão do País que iria tornar-se, dois anos depois, majoritariamente urbano. O processo em curso desafiava a criatividade e o empenho do setor técnico e também aumentava o interesse pelos negócios rentáveis que poderiam resultar daí. Os financiamentos disponibilizados pelo banco, em tese, permitiriam colocar em prática o resultado de muitos experimentos de pré-fabricação e industrialização da arquitetura ensaiados durante a década de 1960.
Entre os ensaios construtivos que visavam a responder à expansão industrial e urbana do País, talvez o mais significativo seja o alojamento estudantil projetado por Oscar Niemeyer para a Universidade de Brasília em 1962, concebido como uma espécie de contêiner a ser organizado em uma estrutura vertical composta por cheios e vazios. A disposição proposta para as unidades com apenas 32 m² criaria um sistema de varandas para cada unidade, praticamente dobrando a área disponível por alojamento.
A experiência apresentada em 1978 pela construtora Alfredo Mathias no canteiro experimental do BNH em Narandiba, Salvador, seria a realização deste experimento construtivo, agora adaptado para unidades residenciais unifamiliares com dois pavimentos implantadas em fileiras. Cada unidade com cerca de 46 m², com dois quartos, sala, cozinha e banheiro.
Outra experiência adotando um sistema de pré-fabricação pesada para a produção de unidades residenciais térreas em fileira foi apresentado por Paulo Mendes da Rocha na revistaAcrópole em 1967. A ideia era desenvolver, com componentes de estrutura e vedação, um sistema aberto em faixas que poderiam ser subdividas em unidades tipo quitinetes com 23 m², ou com dois dormitórios e cerca 40 m².
O sistema foi publicado no mesmo ano do conjunto habitacional Zezinho Magalhães Prado em Guarulhos, SP, de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado. O conjunto previa a aplicação de um sistema de pré-fabricados pesados adotados apenas em alguns blocos, sendo que o restante do conjunto foi realizado com sistemas tradicionais de alvenarias de bloco vedando a estrutura independente de pilares e vigas de concreto armado.
Os exemplos são apenas uma amostra de que o desenvolvimento técnico industrial aplicado à produção habitacional chegou muito próximo de ser realizado e envolveu não apenas os técnicos, mas saiu da prancheta, entrou em fase experimental de prototipagem e quase virou realidade.
Muitas explicações são dadas para a falência deste projeto industrial de produção da casa e da cidade no Brasil. O fato é que foram idealizados como parte de um sistema de vida completo. As soluções construtivas adotadas significavam o controle de processos tecnológicos de produção em torno dos quais a vida social seria organizada. A centralidade do trabalho industrial garantindo um padrão de ocupação e renda para toda a sociedade brasileira.


O conjunto Zezinho Magalhães Prado projetado por Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado em 1967 foi financiado pelo sistema BNH. O projeto original também propunha um sistema de pré-fabricação complexo em que as peças de vedação e o mobiliário faziam parte do mesmo sistema. Apenas alguns blocos foram construídos com préfabricados, os demais foram realizados em sistemas convencionais. Algo semelhante também havia ocorrido no início dos anos de 1960 com os alojamentos da Universidade de São Paulo projetados por Eduardo Knesse de Mello. Muitas experiências foram feitas com o objetivo de produzir unidades em série e muitas explicações têm sido dadas para a falência deste projeto no Brasil

DEMOCRACIA POLÍTICA X DECISÃO TÉCNICA: PROJETO DE ARQUITETURA OU PROJETO POLÍTICO?
Além de fomentar, por um lado, o espírito criativo e empreendedor de uma parte do setor técnico e, por outro, a voracidade da reprodução intensiva de capitais em escalas inimagináveis para a época, os canteiros de obra de Brasília explicitaram de modo quase pedagógico que as orientações políticas do desenvolvimento nacional incluíam-se nas decisões técnicas do projeto de arquitetura, colocando em questão o engajamento da arquitetura moderna na condução política do desenvolvimento em curso no País.
A desconfiança do sentido modernizador seria agravada pela retomada do desenvolvimento econômico a partir de 1967, quando um novo plano de governo inverteu o quadro recessivo, incentivando a demanda por crédito aos setores públicos e privados e facilitando os investimentos estrangeiros no País. Restabelecia-se assim o fluxo da modernização e do desenvolvimento que haviam sido interrompidos com a recessão pós-1961. O setor da construção civil foi novamente ativado, entre outras demandas, pela condução das grandes obras de infraestrutura encomendadas pelo Estado.
Na escala gerencial, engenheiros e arquitetos participavam deste processo. Porém, se as obras de Brasília explicitaram que as orientações políticas do desenvolvimento incluíam-se nas decisões técnicas do projeto, isso ocorreu em um momento no qual era possível acreditar que o progresso social fazia parte de um projeto de industrialização, modernizador. Já a retomada do desenvolvimento econômico em 1967 e os novos canteiros do desenvolvimento nacional evidenciavam a prevalência de um padrão seletivo de acumulação, isto é, concentrador e excludente.
As críticas feitas por Sérgio Ferro no texto Arquitetura nova confirmaram a percepção geral de que o regime de 1964 havia, em 1967, soado "o toque militar de recolher" e que não deixava mais espaço para as utopias sociais que, antes, haviam animado a política de alianças dos partidos de esquerda com o projeto nacional desenvolvimentista, motivando a "coragem construtiva" da arquitetura de Vilanova Artigas em São Paulo e de Oscar Niemeyer em Brasília.

TÉCNICA E POLÍTICA EM CAMPOS OPOSTOS
No início dos anos de 1980, o texto O canteiro e o desenho, também de Sérgio Ferro, viraria uma espécie de cartilha obrigatória para a compreensão da crise do projeto nacional no meio dos arquitetos e de algum modo também atestava a falência "da função social da arquitetura moderna" no caso brasileiro. A recessão econômica voltou a assombrar os últimos anos do regime, que se encerrou em 1985. Com a impossibilidade de novos investimentos, o Estado modernizador e autoritário perdia parte de seu apoio político, ao mesmo tempo em que a técnica modernizadora e a política democrática alinhariam-se em campos opostos de um embate contraideológico que difundiu-se no País.
Em um certo sentido, os vários modelos de unidades de habitação emprestadas da social democracia europeia foram sonhados pelos arquitetos modernos brasileiros como as novas catedrais de uma sociedade mais homogênea, capitaneada por um projeto nacional desenvolvimentista que atingiu seu apogeu e crise com a construção da nova capital do País.
O sonho da razão moderna brasileira durou pouco, amadureceu nos últimos anos da democracia política em 1961 e vigorou até o endurecimento do regime em 1968 que, com o ato institucional nº 5, encerrou para uma geração a esperança em um projeto tecnicamente modernizador e socialmente emancipador.
Vale, para as novas gerações, questionar a validade histórica da premissa contraideológica produzida no calor do embate pela redemocratização. Vale perguntar-se quais seriam os meios para conduzir a experiência concreta da democracia brasileira em um ciclo de expansão e desenvolvimento capaz de mobilizar novas perspectivas de atuação profissional dos arquitetos e urbanistas. Afinal, sem debate não há democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Sérgio. Vinte e dois anos de política de habitação popular (1964-1986). Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, no 22 v. 4 pp. 107 a 119. out-dez 1988.
BONDUKI, Nabil e KOURY, Ana Paula. Das reformas de base ao BNH: as propostas do Seminário de Habitação e Reforma Urbana. Arquitextos (portal Vitruvius) artigo 120.02 ano 10, maio 2010.
D'ARAUJO, Maria Celina. O AI-5. http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5 consulta em 18/03/2014.
Deák, Csaba; SCHIFFFER, Sueli (Org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999.
FREIXO, Adriano de; MUNTEAL, Oswaldo e VENTAPANE, Jacqueline (orgs). O Brasil de João Goulart: um projeto de nação. Puc- Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
LAFER, Betty Mindlin (org.). Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970.
Manoel, Sálua Kairuz. Fundação da casa popular (1946- 1964). São Carlos: USP, 2004. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, EESC/USP, São Carlos, 2004.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista - O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
SCHWARZ, Roberto. "Cultura e política 1964-1969" em O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1978.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

ANA PAULA KOURY é arquiteta e urbanista professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade São Judas Tadeu e autora do livro Grupo Arquitetura Nova, Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro. São Paulo: Romano Guerra, 2003

Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/241/artigo310681-3.aspx

0 comentários:

 
IAB Tocantins Copyright © 2009 Blogger Template Designed by Bie Blogger Template
Edited by Allan