Um panorama da vida e obra de João Filgueiras Lima, Lelé

Por Rafael Urano Frajndlich
Edição 244 - Julho/2014


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Ηθος ανθρωπω δαιμον
Ethos anthropos daimon
O caráter de um homem é o seu destino

Heráclito


Desde o mais jovem estudante até os decanos arquitetos reconhecem a força da obra de Lelé. Pode-se eventualmente discordar de suas formas, múltiplas e com diferentes expressões, mas é fato que no dia 21 de maio de 2014 um importante nome da arquitetura saiu de cena.
Sua trajetória é conhecida: jovem arquiteto decidiu fazer as vezes de pioneiro e enfrentar Brasília em nome da empresa para qual trabalhava. Diante do cerrado, das formas de Niemeyer e do dia a dia desafiador (e cruel) dos canteiros da nova capital, selou a sua formação com uma sensibilidade plástica aliada ao pragmatismo construtivo.
Esse amálgama o levou a se interessar pelas técnicas construtivas industrializadas. Após viagens de pesquisas e experiências iniciais em Brasília, pouco a pouco foi se tornando uma autoridade em tecnologias pré-fabricadas e estratégias de otimização do canteiro.
Sua obra ganhou contornos memoráveis graças a três aspectos. A primeira foi pela insistência cabal em trabalhar para a iniciativa pública. Esta decisão o levou a desenhar secretarias, monumentos e sistemas de drenagem em diversas partes do País, despachando de sucursais nomeadas com siglas indecifráveis e, frequentemente, frustrando-se diante das reviravoltas políticas brasileiras.
O segundo aspecto deu-se no campo das técnicas construtivas: o interesse por modos econômicos e de fácil manipulação o levou ao aperfeiçoamento da argamassa armada, uma espécie de cimento com armadura homogênea, que pode ser utilizada em componentes e peças leves em diversas fases da obra. Na história da arquitetura brasileira, essa técnica e a contribuição de Lelé são indissociáveis.
Enfim, destacou-se pela área na qual desenvolveu grande parte de seus projetos: a hospitalar. Sua relação com a Rede Sarah Kubitschek lhe permitiu desenhar uma série de instalações feitas a partir de componentes produzidos em uma fábrica própria, na qual pode ter autonomia e recursos para explorar um vocabulário expressivo e eficiente.
Sua obra deixa muitas possibilidades de desdobramentos e inspira gerações, mas o que pode ser esquecidas facilmente são nuances do autor que mostram como ele formulou sua concepção de arquitetura.
Lelé, em seus relatos, rememora os grandes momentos de sua vida como traços do acaso. "Eu tendo sempre a dar um peso maior à questão do destino", disse certa vez. Sua formatura coincidiu com a divulgação do projeto de Brasília. O emprego no Instituto de Assistência e Previdência dos Bancários (IAPB) abriu vagas para trabalhar na nova capital, meio pelo qual conheceu Niemeyer. O contato com Aloysio Campos da Paz, idealizador da Rede Sarah, foi feito primeiramente porque sofreu um acidente de automóvel e o médico era chefe da ortopedia do hospital. A tecnologia da argamassa armada era trabalhada no Brasil pela família de um aluno seu da UnB etc.
O gosto pelo acidente é um traço central em Lelé: mostrava sua predisposição para ser levado por descaminhos imponderáveis. Num País onde tudo era volátil, também o arquiteto deveria intuir essa imprevisibilidade. As experiências em Brasília, Salvador, Abadiânia, GO, e Rio de Janeiro atestam que Lelé era um arquiteto disponível, estava a postos para colocar seu conhecimento nas gestões que tinham vontade de moldar, de modo ousado, as cidades brasileiras.
Essa sujeição ao destino foi reforçada, talvez, por Brasília, cidade que surge do nada, onde "durante as noites absolutamente sem nuvens do auge da seca era surpreendente observar o céu repleto de estrelas que se confundia com a própria linha do horizonte", como escreveu Lelé em Crônicas de Brasília, 1957/1961 (AU 192)
Entretanto, nem sempre seu discurso endossava os meios pelos quais foi feita a capital do País. Sua rotina nos canteiros lhe fez testemunha das violências que apareceram com o concreto armado desenhado por um grande gesto. Lelé não teceu críticas à arquitetura de Niemeyer, mas suas memórias da construção de Brasília possuem ceticismo. Seu interesse em pré-fabricação começa com pequenas experiências, no desenho de sistemas construtivos simples para resolver questões particulares, como abrigos para operários, espaços de reunião e outras instalações provisórias. Suas memórias sempre têm uma participação do improviso, da necessidade de resolver com poucos materiais e curto intervalo de tempo problemas contingenciais.
Nesse sentido, não deve surpreender a publicação de um esquemático "galpão para serviços gerais" na revista Módulo de 1963. Seus croquis destoavam dos outros projetos expostos na revista, os desenhos arrojados de Sérgio Bernardes, Vilanova Artigas e do próprio Niemeyer.
O galpão para serviços é um jogo de armar cujo resultado é menos expressivo que o processo construtivo proposto, com pilares, vigas e telhas pré-fabricadas. Essas experiências se aprofundariam no hospital de Taguatinga, na sede das Secretarias de Salvador e muitas outras. Lelé, nessa época, privilegia pesquisas com o concreto armado. Em 1980, em uma entrevista para a mesma Módulo, disse que "o concreto armado oferece possibilidades maravilhosas à invenção arquitetural quer na especulação corajosa de concepções estruturais inovadoras, quer ainda na pesquisa de processos racionalizados de construção".
Sua relação com esse material, antes da exploração das possibilidades da argamassa armada, é reveladora da formação artística de Lelé. Casas como a J.S. Neto e a Residência para Ministro de Estado mostram a vontade de utilizar o concreto de modo eloquente. Entretanto, a exagerada viga vierendeel utilizada na casa ministerial, e a sensação de peso dos pórticos da J.S. Neto mostram uma falta de clareza na produção de peças feitas sem perspectiva de replicação. Do mesmo modo, seu Centro de Exposições no Centro Administrativo da Bahia é uma infeliz articulação de esteios e formas piramidais que está aquém de outras obras do autor que possuíam igualmente uma estrutura ousada - mas em sistema pré-fabricado - como as Secretarias de Estado construídas para o mesmo complexo.
Os projetos in loco à altura de suas experiências industrializadas, nesses primeiros anos de prática, são aqueles que partiram de um vocabulário de peças articuladas. Em 1969, na casa projetada para Aloysio Campos da Paz, Lelé a faz com um material carregável pelas mãos: a pedra. A residência nem mesmo tinha um projeto definido. "Eu escolhi o melhor lugar para locar a casa. (.) Foi o caseiro quem a construiu, eu só fixei mais ou menos a implantação, mas eu tinha em mente três áreas: uma grande sala de estar na área central da casa, o ateliê e a parte dos dormitórios".
A segunda experiência foi a Igreja no centro administrativo da Bahia. Diferentemente do Centro de Exposições, ali Lelé preferiu criar uma peça tipo, feita de concreto armado fundido in loco, e girá-la em torno de um eixo, resolvendo a volumetria da igreja com "pétalas de estrutura independente que se apoiam cada uma em pilar único". As diferentes alturas desses componentes criam defasagens que garantem diversas entradas de luz. A proporção delgada das partes, levemente distanciadas entre si, dão a sensação de leveza do projeto. Sua expressão na arquitetura, portanto, não decorre apenas da aplicação do pré-fabricado, mas de um modo de pensar a beleza dos espaços a partir da articulação de componentes.
Em 1965, Lelé decide, devido ao golpe militar, demitir-se da UnB e deixar Brasília. Continua sua trajetória em Salvador, desenhando diversas frentes de obras públicas. Teve então a chance de sintetizar sua estética de repetição de componentes com a busca pela otimização construtiva, nos desenhos de abrigos de ônibus, bancas de jornal, muros de contenção e escadas e rampas de drenagem.
Essa mudança de ares marca o final das virtualidades utópicas. Malgrado os percalços, em Brasília sua arquitetura integrava um esforço de desenhar o futuro, o horizonte onde as estrelas se encontram. As luzes, entretanto, se apagaram com a demência política que se instaurou. Atuar em Salvador significava voltar ao Brasil mal construído, ao urbanismo desorganizado, ao crescimento injusto e à dominação crônica. Lelé aceitou o novo destino, lá estava de novo o improviso e a necessidade de criar soluções rápidas para enfrentar o precário.
O atendimento a regiões remotas, com pouco acesso por transportes pesados, justificou suas pesquisas de argamassa armada. "Uma escola pode ficar pronta em 15 dias com essa tecnologia", justificava Lelé, "enquanto uma construção normal, de concreto, levaria seis meses".
Sobretudo, a argamassa armada levava o sistema construtivo à escala das pessoas. Sua leveza permitia a operação por um ou dois homens no canteiro para cada peça. Pré-fabricada, feita em usinas e depois transportada para qualquer parte da cidade, a argamassa conciliava as virtualidades da pré-fabricação com a escala do improviso, das questões contingenciais e dos acidentes. Formado pela cidade de homens livres, o arquiteto alcançava a maturidade alinhando muros de arrimo e calhas de drenagem na Bahia. Fez depois escolas em Abadiânia, Rio de Janeiro e a restauração do centro histórico de Salvador.
Na Rede Sarah, o arquiteto começou com um projeto de investigação de linguagem que conciliaria sua experiência em projetos complexos com o canteiro de peças leves. No primeiro hospital, em Brasília, ainda sem a fábrica, Lelé teve de criar investigações de linguagem, soluções que antecipavam os seus feitos futuros na rede hospitalar. As vigas vierendeel mais uma vez apareciam, mas dessa vez são empilhadas, emulando peças justapostas, o procedimento que sabia atuar. Nas garagens e apoio, sheds feitos de ferro-cimento, um protótipo da argamassa armada.
Oito anos separam a experiência do hospital de Brasília do de Salvador. Na Bahia, já estão presentes as características que marcariam seus projetos na área da saúde. Com a fábrica de peças pré-fabricadas, usada intensivamente, os espaços e setores tornam-se uma expressão da liberdade plástica, seja no desenho de sheds, muros e outros componentes, seja nas grandes linhas de iluminação e horizontalidade dos volumes. Eis de novo o grande gesto, aquele de Niemeyer e Lúcio Costa em Brasília, mas numa outra escala, num outro peso.
Em Salvador utiliza a estrutura metálica, técnica que vinha desenvolvendo paralelamente, e que tem sua primeira formulação mais próxima da plástica desses hospitais em 1984, na Associação Portuguesa. O metal não é uma escolha distante da argamassa armada: desde suas primeiras experiências, Lelé admite a importância de uma serralheria sofisticada, para fazer as peças e fixação dos componentes e as formas. O metal vem ao primeiro plano como parte de suas pesquisas de otimização das técnicas de sua fábrica, e consolida o caráter múltiplo e versátil de sua concepção.
Apresentando seus hospitais em palestras para estudantes, Lelé costumava relatar suas experiências como uma crônica construtiva: histórias da piscina feita em argamassa que flutuava, dos problemas de obra que eram resolvidos por suas equipes.
Com essa força criativa - e viabilizadora - cumpriu o seu destino. As voltas no País o fizeram chegar ao final da vida sem ter o controle de sua fábrica, desenhando conjuntos para o programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal e outros edifícios públicos, como o Tribunal Regional do Trabalho, em Salvador. Em entrevistas e falas, nos últimos anos, revelava a frustração com as experiências interrompidas, os projetos não realizados.
Entretanto, Lelé deve ser visto como um vitorioso. Conseguiu dar um passo largo não só na arquitetura, mas no modo como ela interfere na construção de perspectivas históricas. Não se trata somente de um acervo amplo de obras, mas de uma postura. As mais generosas premissas desenhadas em Brasília pela geração de Niemeyer resumem-se na criação de uma concomitância entre horizonte construído e político: o grande gesto era um esforço civilizatório, integrar o homem à paisagem. Lelé foi um realista, deu uma leitura literal do gesto e da leveza da moderna arquitetura brasileira: levou-os ao extremo, trouxe-os ao alcance das mãos.
"O caráter de um homem é o seu destino". A fala de Heráclito, perdida num fragmento da origem da humanidade, reverbera na arquitetura deste arquiteto. Lelé foi levado, cidade a cidade, pelo ímpeto de desenhar não um País, mas um novo mundo, e o fez com tamanha generosidade que justapôs seu caráter aos descaminhos, inspiração para todos os homens.

RAFAEL URANO FRAJNDLICH é arquiteto e urbanista, doutor em história da arquitetura pela FAUUSP. Desenvolve atividades de projeto e docência, além de ser colaborador em revistas especializadas

BIBLIOGRAFIA
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Lima, J. F., "Residência para Ministro de Estado", In. Módulo, nº 49, 1978, pp. 60-65
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Fonte:
http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/244/artigo318123-1.aspx

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